A Renascença
Características Gerais
A Renascença é uma poderosa afirmação, particularmente no campo da prática, de humanismo e de imanentismo, o que é manifestado pelo seu individualismo, pelo seu estetismo, pelo seu ardente interesse pelo mundo a conquistar, dominar, gozar com meios humanos; pelo seu naturalismo que diviniza o homem material – como já aconteceu no paganismo antigo, para o qual o Humanismo, de fato, apela, e de que parece um retorno.
Entretanto, falta ao Humanismo moderno a espontaneidade e a serenidade do paganismo antigo: o Humanismo moderno não descansará em um tranqüilo gozo da vida, mas procurará alimento no ativismo agitado e sem meta, característico da idade moderna.
O Humanismo pode, com razão, definir-se pela palavra: o homem potenciado, celebrado, exaltado até à divindade, livre de si mesmo, dominador da natureza, senhor do mundo. É, logo, um paganismo ainda mais radical que o antigo, porquanto espiritual e interior.
Dar uma documentação formal desse caráter pagão, imanentista, do Humanismo e da Renascença não é coisa fácil, pois trata-se de um período inicial, em que se entretecem motivos multíplices, e, sobretudo, o velho persiste ao lado do novo, dando origem àquela duplicidade especulativa e prática, tão característica dos homens da época.
Mas o início do Humanismo e da Renascença é rico de todos os germes que se desenvolverão no sucessivo período moderno, imanentista, em que se poderá claramente conhecer a árvore pelos frutos.
É uma multiplicidade de motivos indiscutivelmente dominada pelo espírito panteísta do neoplatonismo, que atravessou toda a Idade Média; entretanto, na Idade Média, tal espírito era corrigido, religiosamente, pela teologia católica e, racionalmente, pela escolástica tomista.
É uma dualidade composta de velho e de novo, em que não será difícil separar o elemento interior do elemento exterior:
- se se considerar, em geral, o ideal da vida daquela época, que chamava virtude a força, e enaltecia não o Pobrezinho de Assis e sim o Príncipe Valentino;
- se se tiver presente Nicolau Machiavelli, que – sem possuir uma metafísica consciente – está persuadido de que o Estado, mera obra do homem, é o vértice da humanidade, estando acima da religião e da moral transcendente, e prefere o paganismo ao cristianismo;
- se se pensar em Giordano Bruno, o maior filósofo da época, o qual parece reconhecer a obscuridade e a incoerência do seu pensamento, mas tem consciência de que a sua doutrina – racionalista, monista e humanista – é um crepúsculo preludiando o dia e não a noite.
Essa é a alma, o significado, não o valor, do Humanismo e da Renascença: uma alma pagã. Não há, ao lado do humanismo pagão, um humanismo cristão, que seria uma contradição em termos. Esses elementos são essencialmente formais e estéticos porque a grande valorização cristã da civilização clássica – do pensamento grego e do jus romano – era já um fato consumado.
E os elementos novos do humanismo – a ciência, a técnica, a história, a política – não se podem dizer imanentistas antes que cristãos, pois, em si mesmos, são infrafilosóficos, e, portanto, indiferentes a qualquer concepção da realidade.
O renascimento cristão, a unidade real e potencial dos grandes valores da civilização no valor sumo da religião, não é obra dos séculos XV e XVI, mas do século que se abre com Inocêncio III e se encerra com Dante, e viu Francisco de Assis e Antonio de Lisboa, Domingos de Gusmão e Tomás de Aquino.
O Renovamento das Antigas Escolas Filosóficas
Uma das manifestações características da Renascença é o renovamento das antigas escolas filosóficas, clássicas, gregas. Na Idade Média o pensamento clássico foi bem conhecido e valorizado. No entanto, tal conhecimento e valorização diziam respeito aos maiores filósofos gregos, em especial a Aristóteles.
Na Renascença, ao contrário, volta-se à sancta antiquitas, em oposição ao espírito cristão. E valorizam-se as antigas escolas filosóficas, realçando-lhes o conteúdo de humanidade, presente em todas elas, não obstante a variedade de suas orientações.
Naturalmente não são, nem podiam ser, as escolas filosóficas clássicas em sua espontaneidade original, pois, entre a classicidade e a Renascença, medeiam quinze séculos, profundamente influenciados pela mensagem cristã. E, após o aparecimento da Cruz, já não é mais possível o retorno à serenidade clássica de Aristóteles ou ao ascetismo imanentista dos estóicos.
Na Renascença são representadas, mais ou menos, todas as escolas filosóficas antigas: o platonismo, o aristotelismo, o estoicismo, o epicurismo, o ceticismo e o ecletismo. Especialmente as duas primeiras e, entre estas, precipuamente a primeira. O aristotelismo da Renascença exclui, naturalmente, a interpretação de Aristóteles dada por Tomás de Aquino, e sustenta ou a interpretação naturalista de Alexandre de Afrodísia, ou a panteísta de Averroés.
O platonismo é, mais propriamente, neoplatonismo: já porque assim se tinha fixado na antigüidade e neste sentido influenciara toda a Idade Média (pseudo Dionísio Areopagita, Scotu Erígena, Mestre Eckart); já porque a sua fundamental concepção panteísta e o seu potenciamento do espírito humano podiam melhor corresponder ao imanentismo e humanismo da Renascença.
O Platonismo
O ídolo da Renascença é Platão: artista e dialético, teórico do amor e da beleza, iniciador da ciência matemática da natureza. Em 1404 Leonardo Bruni aretino (1369-1440) publicava a primeira tradução parcial de Platão, iniciando, destarte, a renascença platônica. Em 1429 o camaldulense frei Ambrósio Traversari, de volta de Constantinopla, levava para a Itália o conjunto completo dos escritos platônicos.
Entretanto foi o Concílio de Florença (1439) que deu um impulso decisivo aos estudos platônicos na Itália – bem como aos estudos aristotélicos e dos filósofos clássicos, em geral.
Esse Concílio foi convocado para a união da igreja grega com a igreja latina, e chamou para a Itália vários doutores orientais, conhecedores profundos de Platão. Outros vieram pouco depois, devido à queda de Constantinopla (1453) em mãos dos turcos. Famoso é Jorge Gemistos Pleton (1355-1450), autor da obra Sobre a Diferença da Filosofia Platônica e Aristotélica, que, realmente, é uma polêmica antiaristotélica.
Esse escrito provocou uma resposta violenta ao aristotélico Jorge de Trebizonda (Comparatio Platonis et Aristotelis). Este filósofo – apelando também para Tomás de Aquino – sustenta a superioridade de Aristóteles sobre Platão pelo seu espírito científico, pela sua doutrina em torno de Deus e da alma, e pela conseqüente possibilidade de concordar a sua filosofia com o cristianismo.
Da parte platônica, replicou contra Jorge de Trebizonda o seu concidadão Basílio Bessarione (1403-1472) com o escrito In calumniatorem Platonis. Bessarione, eminente prelado da igreja oriental, veio para a Itália com o séqüito do imperador João VII Paleólogo, para tratar da unificação da igreja grega com a igreja latina. Foi feito cardeal pelo Papa Eugênio IV e permaneceu na Itália, cooperando eficazmente para o incremento do ressuscitado helenismo.
Depois desse platonismo de importação oriental, na Segunda metade do século XV surge e firma-se um platonismo italiano. O centro foi precisamente Florença, onde foi celebrado o famoso Concílio.
Seu principal representante foi Marsílio Ficino, animador da célebre academia platônica florentina. Esta academia nasceu graças a um cenáculo de literatos, artistas e pensadores, amigos da casa De Médicis. Fizeram parte deste cenáculo Poliziano, Pulci, João Pico della Mirandola e o próprio Lourenço, o Magnífico.
Marcílio Ficino nasceu em 1433 em Figline Valdarno. Protegido por Cosme De Médices, que o presenteou com uma Quinta, onde teve sua sede a academia platônica, pode consagrar toda a sua vida aos prediletos estudos filosóficos. Em 1473 foi ordenado padre e a sua vida foi muito austera no meio de Florença do século XV. Faleceu em 1499.
Sua atividade principal foi traduzir. Traduziu elegantemente, para o latim, Platão (1477) e Plotino (1485), além de outros neoplatônicos. Expôs o seu pensamento em uma grande obra (Theologia platonica de immortalitate animorum – 1491), em que procura concordar o platonismo, de que era entusiasta, com o cristianismo, em que acreditava seriamente.
Entretanto não foi um metafísico, mas um eclético e suas finalidades eram morais. Sua idéia animadora é a exaltação do homem como microcosmo, síntese do universo: conceito antigo, neoplatônico, mas que teve no humanismo do Renascimento um valor e um significado particulares.
Outra idéia sua inspiradora é o conceito de uma continuidade do desenvolvimento religioso, que vai desde os antigos sábios e filósofos – Zoroastro, Orfeu, Pitágoras, Platão – até o cristianismo: expressão do universalismo religioso da Renascença.
Depois de Marsílio Ficino, o mais famoso platônico pode ser considerado João Pico della Mirandolla (1463-1494), autor de De dignitate hominis, que professa verdadeiramente um ecletismo baseado no platonismo e no cabalismo. Dotado da mais vasta e heterogênea cultura, após várias peregrinações, estabeleceu-se em Florença junto de Lourenço, o Magnífico.
Aí entrou em contato com Marsílio Ficino, que influiu no seu temperamento exuberante e passional, equilibrando-o filosófica e religiosamente. “Blasonava de poder disputar de omni rescibili – escreve Franca – e foi tido por seus contemporâneos como um prodígio de memória. Aos 18 anos sabia 22 línguas”!
O Aristotelismo
Não é sempre fácil distinguir o aristotelismo do platonismo da Renascença, porquanto, freqüentemente, aparecem confusos no sincretismo neoplatônico, que é a tendência especulativa dominante na época. Também o aristotelismo, como o platonismo, teve impulso, graças aos sábios gregos vindos para a Itália, tradutores de Aristóteles e dos seus comentadores, entre os quais lembramos, no século XV, Teodoro de Gaza e o já mencionado Jorge de Trebizonda.
Como já foi dito, o aristotelismo da Renascença se distingue em duas correntes principais: a naturalista inspirando-se em Alexandre Afrodísio, e a panteísta-neoplatônica, inspirando-se em Averroés, ambas contrárias à interpretação tomista-cristã.
Prevalece a escola alexandrina, cujo imanentismo naturalista é mais conforme ao espírito do Renascimento. A escola averroísta, entretanto, considerando o intelecto humano como sendo a atividade de uma essência transcendente e divina, contrasta o humanismo imanentista da mesma Renascença.
O mais famoso entre esses novos aristotélicos é Pedro Pomponazzi , alexandrista, nascido em Mântua em 1462, professor de filosofia nas universidades de Pádua, Ferrara e Bolonha, onde faleceu em 1525.
É célebre o seu opúsculo Sobre a Imortalidade da Alma, publicado em Bolonha em 1516. Neste opúsculo conclui em favor da mortalidade da alma, sustentando que esta realiza o seu fim último na vida terrena.
Para conciliar, pois, esse seu racionalismo com a religião cristã, recorre a certas distinções que relembram a velha teoria averroísta das duas verdades: a religião é, no fundo, justificada como sendo a filosofia do vulgo, para finalidade prática e pedagógica.
Respondiam a Pomponazzi, Nifo (averroísta) e Contarini (tomista) com dois ensaios tendo o mesmo título (Sobre a Imortalidade da Alma); e Pomponazzi replica como uma Apologia (contra Contarini) e com um Defensorium (contra Nifo). Nem a morte pôs termo àquela polêmica.
O aristotelismo teve, na Renascença, uma fortuna especial no campo da estética, da poética, em torno de que se disputou longa e fervidamente, em especial por parte dos literatos. Parte-se da Poética de Aristóteles, cuja primeira tradução remonta ao ano de 1498, por obra de Jorge Valla.
Aristóteles sustentara ser a arte – bem como a história – uma imitação da realidade. Entretanto, a arte é superior à história, porquanto tem como objeto o universal, o necessário, a essência das coisas; ao passo que a história tem como objeto o particular, o contingente, o acidental. Em torno deste tema se travam as disputas mais variadas.
O Estoicismo
O espírito autônomo da Renascença devia provar viva simpatia para o sábio estóico, impassível, dominador das coisas e dos eventos. O estoicismo não foi apenas objeto de admiração cultural, literária, mas tornou-se ideal de vida moral em lugar do cristianismo, escola de energia e de conforto.
O estoicismo da Renascença, porém, é preso pela ação, diversamente do estoicismo clássico, negador da ação, considerada causa de perturbação.
O estoicismo renascentista enaltece o homem, a vida, o mundo, contra a concepção transcendente e ascética cristã. Seja como for, a moral estóica, mais ou menos ajustada ao cristianismo, desfrutou de grande favor junto dos filósofos das mais diferentes tendências nos séculos XVI e XVII.
O estóico mais notável da Renascença foi o belga Justo Lípsio (1547-1606), professor em Lovaina, autor de De Constantia, e de Manuductio ad stoicam philosophiam.
O Epicurismo
O epicurismo, melhor do que o estoicismo, condizia com o espírito humanista, imanentista e mundano da Renascença, em especial na vida gozadora e requintada, voluptuosa e artística da cortes esplêndidas da época, e também na literatura e no pensamento. João Boccaccio, autor do Decamerone, em o século XIV, e Lourenço, o Magnífico, no século XV, são duas expressões práticas desse espírito epicurista.
O expoente mais notável dessa tendência epicurista é Lourenço Valla (1407-1459), autor do famoso livro De voluptate ac de vero bono, onde o autor compara a moral estóica e a epicurista, simpatizando, naturalmente, com esta última.
Quanto à vida futura, Valla oscila entre a sua negação e uma representação no sentido hedonista, e tente, uma certa conciliação entre epicurismo e cristianismo; mas fica decididamente hostil ao ascetismo, quer cristão, quer estóico.
O Ceticismo
Também o ceticismo da Renascença foi inspirado pelo ceticismo clássico. E também este novo ceticismo renascentista surgiu mais por fins práticos do que por motivos teoréticos.
Os motivos mais específicos que deram origem ao ceticismo da Renascença foram:
- a sede do individual, da concretidade;
- a paixão pela observação detalhada própria do pensamento moderno em geral, em oposição ao pensamento antigo e medieval, voltados para o universo e o abstrato;
- a variedade e o contraste das diversas escolas e tradições (filosóficas e religiosas);
- a mentalidade literária da época, apaixonada pela estética, e incapaz de levantar grandes construções sistemáticas;
- a religiosidade persistente, que julgava salvar a fé deprimindo a razão, tendo esta atacado, freqüente e violentamente, a religião;
- o contraste entre a exigência religiosa e o paganismo da vida que surgia de novo.
O ceticismo da Renascença tem seus maiores expoentes fora da Itália, e o maior é Montaigne.
Miguel de Montaigne (1533-1592), francês, é o autor dos famosos Essais: “Que sais-je“? O seu interesse é voltado para o estudo do eu, não como substância espiritual, e sim como caráter, centro unitário das mais variadas experiências humanas.
Tudo o mais lhe parece incerto: os sentidos enganam-nos, a razão perde-se num labirinto infindo, a moral varia conforme os tempos e os lugares. Daí a necessidade da fé, mas de uma fé em que Deus serve ao homem. Este – como já pensavam os céticos antigos – atinge a paz abandonando-se à diretriz da natureza. O que especialmente emerge em Montaigne é o individualismo da Renascença.
Referências Bibliográficas:
DURANT, Will. História da Filosofia – A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.FRANCA S. J. Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.JAEGER, Werner. Paidéia – A Formação do Homem Grego, Martins Fontes, São Paulo, 3ª edição, 1995.
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