O Direito Natural e os Direitos Humanos
Falácias e Utopias da Justiça e dos Direitos Humanos – Parte 3
1. O DIREITO NATURAL
O Direito Natural fundamenta-se na metafísica. Alijada a multivocidade da expressão “Direito Natural”, temos que ela significa um Direito naturalmente conhecido pela racionalidade ínsita no homem; objetivamente, fundante de toda a lei jurídica e, subjetivamente, fundamentadora de toda a exigência jurídica.
Cuida, assim, o Direito Natural da fundamentação última do Direito. Daí seu enraizamento na filosofia, possibilitando ao jurista a técnica de, criteriosamente, distinguir o Direito autêntico do Direito não disciplinador do homem como ser em suas relações sociais e finalidades, sem qualquer dicotomia no tocante à faculdade, ambas no âmbito jurídico.
1.1. O Direito Natural Anterior à Lei Humana
A questão posta na filosofia jurídica, concernente à existência ou não de um direito anterior a toda lei positiva humana, é respondida afirmativamente. Este, no sentido de um conjunto de normas aptas para resolver os conflitos humanos, proporcionando um conjunto de regras plenas de valor jurídico e conhecidas pelo homem com sua razão, é o Direito Natural, ainda que leis humanas não o traduzam por normas expressas. (Ylves José de M. Guimarães, Direito Natural, 1991:211).
Cuida o Direito Natural de precisar tudo o que é devido ao homem para a sua plenitude pessoal e cuja obtenção esteja de algum modo sujeita a outro, e, conseqüentemente, a reconhecer como próprio do seu semelhante tudo aquilo – coisas ou faculdades – que estejam em relação necessária com a satisfação adequada das exigências essenciais da sua natureza.
Objetiva, fundamentalmente, congregar todos os homens, em todas as partes, em uma unidade que reflita o que é comum a todos os seres humanos enquanto seres humanos. O Direito Natural nos dá as bases para a defesa dos valores humanos, de todos os níveis da existência do homem individual, até ao do mundo em toda sua plenitude. Dá, assim, valor supremo à dignidade da pessoa humana.
2. OS DIREITOS HUMANOS
Desde Rousseau (1712-1778), estava se expandindo a noção dos direitos e das liberdades humanas. Ao afirmar que o homem é naturalmente bom, Rousseau quis negar o pecado original, portanto, a noção de que o mal lhe é inerente – sugerindo que se o homem se torna fraco, ansioso ou infeliz é porque o meio no qual vive não é adequado à sua natureza. O homem nasce com potencialidades que ele luta por realizar: se for impedido de fazê-lo, torna-se ambicioso, cheio de necessidades que o colocam em conflito com os outros homens por não poder satisfazê-las.
Rousseau estabelece uma estreita correlação entre a estrutura social e as condições morais e psicológicas do indivíduo, acreditando que a discórdia entre os homens advém da excessiva desigualdade de riqueza e do tamanho e da complexidade da sociedade moderna.
O homem não poderia ser livre e feliz se não pudesse estabelecer uma boa relação consigo mesmo e com os outros, o que somente poderia acontecer numa comunidade pequena e simples, onde todos pudessem participar em igualdade de condições das mesmas crenças, dos mesmos princípios, do estabelecimento das suas leis e do seu governo. Aí, haveria a possibilidade de um mundo inteligível. Numa comunidade grande e complexa, segundo ele, surgem inevitavelmente a desigualdade e o controle de poucos sobre uma maioria passiva.
No Brasil de hoje, fala-se muito em Direitos Humanos; tornou-se politicamente correto mencioná-los. No entanto, há pouco mais de 15 anos, abordar os Direitos Humanos em nosso país era considerado subversão, os seus divulgadores eram mal vistos e até execrados como “defensores de bandidos” – o que não deixa, às vezes, de ter a sua veracidade.
Mesmo depois do fim da ditadura militar e do restabelecimento da democracia, certos setores da sociedade ainda encaram com desconfiança aqueles que defendem os Direitos Humanos.
Alguns policiais ainda afirmam: “Fazemos um esforço enorme para prender um criminoso e quando o fazemos, os ‘Direitos Humanos’ atrapalham tudo, pois não permitem torturar e bater”.
A deturpação do significado dos Direitos Humanos era proposital por parte de grupos de extrema direita, aos quais interessava a consolidação do status quo e do autoritarismo. Estas facções exploravam o medo da violência crescente e, sobretudo, a tomada de consciência das classes populares esmagadas ao longo de 21 anos de ditadura.
A acirrada incompreensão e a campanha contra os Direitos Humanos provêm do desconhecimento daquilo que eles representam ou até mesmo de posições egoístas dos interessados em manter situações de privilégios. No entanto, eles interessam a todos e a cada um em particular.
Sem respeito aos Direitos Humanos, não pode haver sociedade livre, justa, solidária e tampouco democracia sólida. Mas, como respeitar os Direitos Humanos se os Direitos Humanos dos menos favorecidos foram esquecidos?
Como respeitar os Direitos Humanos se, ao vermos um pobre pai de família, desempregado, ignorado por uma sociedade utópica e imoral e com dez filhos para sustentar, se vê obrigado a roubar um litro de leite para dar ao filho que chora de fome e, por este ato, acaba sendo preso, enquanto bandidos atrozes estão sendo defendidos pelos supostos Direitos Humanos? Onde está a solidariedade e a democracia dos Direitos Humanos?
Direito, no Brasil, sempre foi um conceito vago, que significou privilégios para alguns. Em seus 500 anos de história, foi o autoritarismo e não o Direito, que permeou as relações na sociedade e entre ela e o Estado.
A finalidade da colonização foi o enriquecimento europeu com a exploração predatória de recursos naturais, como o pau-brasil e o ouro – e de seus recursos humanos – a mão-de-obra indígena e a negra. A escravidão, durante três séculos, forneceu mão-de-obra barata e fortaleceu o autoritarismo. Para a maioria da classe dominante, o escravo era um objeto sem necessidades nem quaisquer direitos.
O dono do escravo podia conceder-lhe regalias por mera generosidade, e não como direito ou respeito à dignidade de sua pessoa. O escravo não era nem cidadão de segunda classe como eram consideradas mulheres, por exemplo, mas meros instrumentos, cujo destino era o trabalho a serviço dos mais poderosos.
As populações do campo, isoladas em imensas extensões de terra e que também dependiam diretamente dos donos do poder, não cogitavam em exigir direitos, mas ansiavam por dádivas e favores. A elite, única considerada capaz de dirigir a nação e de estabelecer a ordem, forjava leis que defendiam, antes de tudo, os seus próprios interesses. Não podemos nos esquecer de que a elite burocrática ainda continua dirigindo a nação e forjando leis que lhes favoreçam.
O trabalho, sutilmente, era considerado desprezível, sobretudo o trabalho manual. O preconceito vinha disfarçado e diluído em sentimentos de generosidade, calcados numa idéia de superioridade – infelizmente, ainda continua sendo assim.
O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão; e ela deixou marcas profundas na cultura do país. Nesta sociedade hierarquizada, dissimulada por uma ideologia de conciliação, “Direito” era sinônimo de privilégios que não alcançavam a maioria.
Com a República, a situação mudou apenas na teoria. No início do século, as greves eram tidas como “um acinte” e as questões sociais, uma “questão de polícia”.
Ocorreram progressos, mas ainda perdura no povo a idéia de que tudo se deve esperar do governo, particularmente favores, e, na relação Estado/sociedade, ainda permeiam os critérios do paternalismo e clientelismo.
Quando no Brasil dos anos 60 a população começou a exigir direitos, os militares impuseram “ordem” e, inspirados na Doutrina da Segurança Nacional, instalaram uma ditadura que durou 22 anos.
Com lutas, sacrifício e dor, a sociedade conquistou as eleições diretas e o sufrágio universal. Mas os direitos sociais ainda não estão em vigor.
2.1. Os Direitos Humanos Antes da Declaração Universal
O esforço para atingir a justiça entre os homens se confunde com a própria história das sociedades, criando a verdadeira gênese dos Direitos Humanos.
Antígona, contrariando as leis do Estado, enterra o irmão que deveria ficar entregue aos abutres. Após enterrá-lo, sua outra irmã, Ismene, pergunta porque ela desobedecera a lei. Em resposta, Antígona diz que não nasceu para o ódio, mas sim para o amor.
Respondendo ao rei Creon, completa o raciocínio afirmando que obedeceu a uma lei que não é de ontem nem de hoje, mas de sempre. A peça de Sófocles ilustra o primeiro tema da reflexão grega: a justiça, a busca do equilíbrio entre o muito e o muito pouco.
O fato da pontuação de Antígona se dar na palavra amor determina uma condição fundamental na espécie humana. Essa condição, apresentada das mais diversas maneiras durante a história, forma o caldo de cultura que permite ao homem da Idade Moderna desenvolver idéias de igualdade e liberdade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem sua gênese freqüentemente associada à Idade Moderna, com a criação dos direitos naturais. Porém, a questão deste ponto de partida, se analisada de uma forma mais abrangente do que pelo recorte legal, nos apresenta uma perspectiva muito mais ampla.
Antes de seguir este caminho, é preciso entender dois conceitos. O primeiro é a ligação direta que tiveram os legados gregos e romanos para a formação do pensamento moderno. A democracia grega ao lado do direito romano, que sedimentara a tradição judaico-cristã, formam a base do pensamento ocidental.
O segundo como observou Ortega y Gasset, reside no fato da Europa crescer dialogando com o Oriente. O exemplo mais contundente deste fato é a convivência entre cristãos, judeus, muçulmanos e ciganos na Península Ibérica, durante a Idade Média.
2.2. Os Direitos Humanos no Oriente
O esforço humano para se organizar socialmente pode ser considerado o primeiro passo para fugir à barbárie e perceber o outro: caminho fundamental para a própria descoberta humana e de seus direitos naturais. Para se organizar, as primeiras sociedades se fundamentaram de formas distintas.
Na Babilônia, por exemplo, tem-se o primeiro registro da tentativa de se buscar a justiça com o Código de Hammurabi (1730 – 1685 a.C.), onde se lê que Hammurabi veio para “fazer brilhar a justiça (…) para impedir o poderoso de fazer mal aos débeis”. O Corão, por sua vez, une à justiça a idéia da responsabilidade universal do homem pela vida: “quem matar uma pessoa que não tenha cometido nem crime nem pecado grave será como se tivesse matado toda a humanidade. Quem salva a vida de um homem é como se tivesse salvado a vida de toda a humanidade”.
Contudo, nem todas as sociedades antigas orientais se fundamentavam em códigos. Na China, o confucionismo pauta a conduta dos homens pela via prática. Os ensinamentos de Confúcio (551 – 479 a.C.) nunca perderam a perspectiva do outro: “não faças ao outro o que não quiseres que façam contigo. Não haverá então queixa contra ti no Estado nem em família”.
2.3. Os Direitos Humanos no Ocidente
A idéia de justiça grega, ou a busca do equilíbrio ganha, ainda, mais força na civilização ocidental a partir do cristianismo, que por sua vez assimilou toda a cultura hebraica, composta não só do Velho Testamento como do Talmude.
Enquanto a bíblia hebraica aponta os judeus como os servos de Deus, o Talmude comenta “mas não servos para servos”, numa rebelião explicita à idéia vigente de escravidão, promovendo desta forma a justiça. Essa idéia ganha força ainda maior com o ensinamento cristão do amor por todas as criaturas. Como demonstra a epístola de João, “quem ama Deus, ama também o seu irmão”.
O amor e o perdão são dois aspectos que nortearam o pensamento humano da Antigüidade Clássica (Grécia e Roma) até o final do século XIX, quando o materialismo ganha força. Assimilado pelos povos bárbaros, o ideário cristão serve de esteio à eclosão do racionalismo.
2.4. Os Direitos Humanos na Modernidade
Todas essas idéias de amor e justiça que assombraram o espírito humano, muitas vezes de forma transcendente e metafísica, ganharam o corpo de direitos durante a Idade Moderna. O primeiro documento que reconhece explicitamente os direitos naturais é o “Bill of Rights“, declaração de direitos inglesa, proclamada em 1689.
O grande avanço desta Carta é a extinção do direito divino dos reis e a idéia do freeborn englishmen (inglês livre por nascença). Embora reconheça as liberdades naturais dos ingleses, ela exclui todos os outros povos.
Em 1789 é dado um grande passo para a universalização dos direitos durante a Revolução Francesa, quando a Assembléia Nacional declara os Direitos do Homem e do Cidadão, válida para todos os indivíduos. Essa Declaração, na prática, não garantiu de fato todos os direitos “naturais”, inalienáveis e sagrados do homem.
O caso de Olympe de Gouges, que em 1791 propõe uma declaração dos direitos da mulher e acaba guilhotinada, exprime bem as lacunas da Declaração. Nesse mesmo ano, são ratificadas as dez primeiras emendas à Constituição americana, que determinam com clareza os limites do Estado e definem os campos aos quais a liberdade deve ser estendida aos cidadãos.
Embora as emendas garantam liberdade de culto, de palavra, de imprensa, de reuniões pacíficas e de se dirigir aos ingleses, ainda promovem distinção entre os homens, já que não aboliram a escravatura.
Esses três documentos são a base da Declaração dos Direitos Humanos de 1948. Fortemente influenciado pelo horror e violência da primeira metade do século, sobretudo pelas atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, a Declaração estende a igualdade a todos os humanos, incluindo direitos nos campos econômicos, sociais e culturais.
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Bibliografia Sugerida:
GUIMARÃES, Ylves José de Miranda. Direito Natural – Visão Metafísica & Antropológica. Rio de Janeiro: Forense.
Universitária, 1991.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional.São Paulo: Atlas, 9 ed., 2001.
MORE, Thomas. Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 4 ed., 2001.
NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 8 ed., 2000.
REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. São Paulo: Saraiva, 3 ed., 1994.
SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Lições de Introdução ao Direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2 ed., 2000.
SOARES, Orlando. Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 5 ed., 1991.
-. Filosofia Geral e Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2 ed., 1997.
© Texto Produzido Por Rosana Madjarof – 10/09/2002 – Respeite os Direitos Autorais
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