David Hume
O Problema da Causalidade
(Segundo a Investigação sobre o Entendimento)
Não temos necessidade de temer que esta filosofia, na medida em que tenta limitar nossas pesquisas à vida corrente, nunca destrua os raciocínios de vida corrente e leve suas dúvidas tão longe a ponto de destruir toda ação como toda especulação. A natureza sempre manterá seus direitos e, no fim, prevalecerá sobre os raciocínios abstratos. Mesmo que concluamos, por exemplo, que em todos os raciocínios tirados da experiência o espírito dá um passo que não é sustentado por nenhum progresso do entendimento, não há nenhum perigo que esses raciocínios, dos quais depende quase todo conhecimento, sejam afetados por tal descoberta.
Se o espírito não está obrigado a dar esse passo por meio de um argumento, ele deve ser conduzido por outro princípio igual em peso e em autoridade; tal princípio conservará sua influência por tanto tempo que a natureza humana permanecerá a mesma. A natureza desse princípio bem merece que nos entreguemos ao esforço de investigar sobre ela.
Suponha-se que um homem, dotado das mais poderosas faculdades de razão e de reflexão, seja subitamente transportado por este mundo; certamente ele observaria de imediato uma contínua sucessão de objetos, um acontecimento seguir-se a outro; mas seria incapaz de descobrir outra coisa.
De saída, ele seria incapaz, por meio de algum raciocínio, de atingir a idéia de causa e efeito, pois os poderes particulares que concretizam todas as operações naturais nunca se apresentam aos sentidos; e não é razoável concluir, unicamente porque um acontecimento precede outro em um único caso, que um seja a causa e o outro o efeito. Sua formação pode ser arbitrária e acidental.
Não existe razão para se inferir a existência de um pela aparição do outro. Numa palavra, aquele homem, sem mais experiência, nunca faria conjecturas ou raciocínios sobre qualquer questão de fato; só estaria certo do que está imediatamente presente em sua memória e em seus sentidos.
Suponha-se ainda que este homem tenha adquirido mais experiência e que tenha vivido por muito tempo no mundo para que tenha observado a conjugação constante de objetos e de acontecimentos familiares; que resulta dessa experiência? Ele imediatamente infere a existência de um dos objetos pela aparição do outro.
Todavia, ele não adquiriu, com toda sua experiência, nenhuma idéia, nenhum conhecimento do poder oculto pelo qual um dos objetos produz o outro; e não é por nenhum progresso de raciocínio que ele é obrigado a chegar a esta conclusão. Mas ele sempre se acha determinado a tirá-la; e, mesmo que o convencêssemos que seu entendimento de modo algum participa na operação, ele continuaria a ter o mesmo pensamento. Existe um outro princípio que o determina a estabelecer tal conclusão.
Esse princípio é o costume, o hábito. Pois, todas as vezes que a repetição de uma operação ou de um ato particular produz uma tendência no sentido de renovar o mesmo ato ou a mesma operação sem o impulso de qualquer raciocínio ou progresso do entendimento, dizemos sempre que essa tendência é o efeito do costume. Ao empregar esta palavra não pretendemos ter dado a razão última de tal tendência. Apenas designamos um princípio de natureza humana, universalmente reconhecido e bem conhecido por seus efeitos.
O Problema do Mal
(Discurso de Filon nos Diálogos sobre a Religião Natural, capítulo XI)
Se todas as criaturas vivas fossem incapazes de sofrer ou se o mundo fosse administrado por volições particulares, o mal nunca teria acesso ao universo; e se os animais fossem dotados de uma ampla provisão de forças e de faculdades. se as diversas forças e princípios do universo fossem exatamente construídos para sempre conservar o temperamento justo e o justo meio, necessariamente teria havido muito pouco mal em comparação ao de que nos ressentimos efetivamente.
Que diremos então nesta ocasião? Diremos que tais circunstâncias não são necessárias e que facilmente poderiam ter sido mudadas no arranjo do universo? Tal decisão parece demasiado presunçosa para criaturas tão cegas e ignorantes como nós. Sejamos mais modestos em nossas conclusões.
Convenhamos que, se a bondade divina – entendo uma bondade tal qual a do homem – pudesse ser estabelecida por razões a priori admissíveis, esses fenômenos, por mais deploráveis que fossem, não bastariam para perturbar o dito princípio, mas poderiam facilmente, de algum modo desconhecido, se conciliar com ele.
Todavia, afirmamos que, como essa bondade não é previamente estabelecida, mas deve ser inferida segundo os fenômenos, não pode haver nenhum motivo em favor de tal inferência, quando existem tantos males no universo, e que teria sido tão fácil remediar isto para tanto que o entendimento humano possa ser admitido a julgar em tal assunto.
Sou suficientemente cético para convir que as más aparências, não obstante todos os meus raciocínios, podem ser compatíveis com tais atributos. Tal conclusão não poderia resultar do ceticismo: é preciso que ela provenha dos fenômenos e de nossa confiança nos raciocínios que deles deduzimos.
Vejam este universo em torno de vocês. Que imensa profusão de seres animados e organizados, sensíveis e agentes! Vocês admiram esta variedade e esta fecundidade prodigiosa. Mas examinem um pouco mais de perto essas existências vivas, as únicas que vale a pena considerar.
Como são hostis e destruidoras umas para as outras! Como são insuficientes, tanto quanto são para sua própria felicidade! Quão desprezíveis ou odiosas para o espectador! O todo só suscita a idéia de uma natureza cega, impregnada por um princípio vivificante e que deixa cair de seu regaço, sem discernimento nem cuidados maternos, seus filhos estropiados e abortados!
Aqui o sistema maniqueu se apresenta como uma hipótese adequada para resolver a dificuldade; e, sem dúvida, num certo sentido, ele é mais especioso e apresenta mais probabilidades do que a hipótese comum, na medida em que dá uma explicação plausível da estranha mistura de bem e de mal que surge na vida. Mas, por outro lado, se considerarmos a uniformidade e a concordância perfeitas das partes do universo não descobrirão aí qualquer marca do combate de um ser malfazejo contra um ser benfazejo.
É certo que existe uma oposição entre dores e prazeres nas afecções das criaturas sensíveis; mas todas as operações da natureza não se realizam por uma oposição de princípios como quente e frio, úmido e seco, leve e pesado! A verdadeira conclusão é que a fonte original de todas as coisas é inteiramente indiferente a todos esses princípios e prefere tanto o bem ao mal quanto o quente ao frio, o seco ao úmido ou o leve ao pesado.
Existem quatro hipóteses possíveis no que se refere às primeiras causas do universo: que são dotadas de perfeita bondade, que possuem perfeita maldade, que são opostas e ao mesmo tempo possuem bondade e maldade e que não possuem bondade nem maldade. Fenômenos mistos nunca poderiam provar os dois primeiros princípios, que são isentos de mistura. A uniformidade e a firmeza das leis gerais parecem se opor ao terceiro. Por conseguinte, o quarto parece muito mais provável.
Referências Bibliográficas:
DURANT, Will. História da Filosofia – A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA S. J. Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.
JAEGER, Werner. Paidéia – A Formação do Homem Grego, Martins Fontes, São Paulo, 3ª edição, 1995.
Coleção Os Pensadores. Hume, Nova Cultural, São Paulo, 1999.
© Texto Produzido Por Rosana Madjarof – 1999 – Respeite os Direitos Autorais
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