Niccolo Machiavelli e Galileu Galilei

Niccolo Machiavelli e Galileu Galilei

Niccolo Machiavelli e Galileu Galilei

Sumário

Niccolo Machiavelli e Galileu Galilei

A Renascença

A Política Nova e a Ciência Nova

A prescindir da arte e da literatura, o grande valor, a maior conquista do pensamento da Renascença, está na história humana, e na ciência natural. Daí derivam, em seguida, a ciência política e a técnica científica (ciência aplicada) que tiveram, na Renascença, o seu grande início. É o fruto do vivo interesse e da penetrante observação da experiência e da concretidade, quase que desconhecidos do pensamento clássico e do pensamento medieval, inteiramente absorvidos pelo universal e pela transcendência.

Estas duas grandes conquistas – história e ciência – embora se apresentem em conexão com a filosofia imanentista, humanista, naturalista da época, de direito são dela independentes, como, aliás, são independentes de qualquer filosofia: porquanto, ficando no âmbito da experiência, história e ciência, não resolvem, nem podem resolver o problema filosófico, cuja solução, necessariamente, tem que transcender o próprio campo da experiência.

A expressão clássica da nova ciência política é Nicolau Machiavelli, não filósofo, e sim teórico da técnica política, ainda que o seu pensamento seja alicerçado na metafísica do humanismo e do imanentismo renascentista. E a maior expressão da ciência nova é Galileu Galilei. Ele também não foi filósofo, mas teórico e técnico da renovada ciência da natureza, mesmo que tenha veleidades e faça afirmações de alcance metafísico.

 

Niccolo Machiavelli

Nicolau Machiavelli nasceu em Florença em 1469. Foi secretário e historiador da república florentina. Destituído e exilado, voltou ainda à pátria, chamado pelos amigos. Faleceu em 1527, obscuro e abandonado. Entre seus escritos têm particular interesse filosófico Il Príncipe e os Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio.

Machiavelli propõe-se o problema: como constituir um estado, partindo do terreno realista da experiência e prescindindo de qualquer valor espiritual e transcendente, ético e religioso. A experiência histórica lhe diz que a natureza do homem é profundamente egoísta e malvada. Ele tem do homem uma concepção pessimista, semelhante à cristã, mas sem a explicação (o pecado original) e sem o remédio (a redenção pela cruz), que o cristianismo oferece.

Então é preciso organizar naturalisticamente e subordinar mecanicamente um complexo de paixões e de egoísmos a um egoísmo maior, o do príncipe e do estado. É preciso constituir uma ciência política sobre a base de um utilitarismo rigoroso.

Daí a máxima famosa: “o fim justifica os meios”. O fim último é o estado, a que tudo deve ser subordinado, tanto os indivíduos como todos os valores, até os morais e religiosos. Indivíduos e valores devem servir unicamente como instrumentos de governo, e podem ser aniquilados pelo estado. A este propósito é característica e intuitiva a comparação que Machiavelli faz entre o cristianismo católico e o paganismo antigo, concluindo em favor da superioridade (política) do segundo.

Precisamente pelo fato de que o paganismo representa uma concepção e uma praxe humanistas, mundanas, em que tudo é subordinado ao estado, ao passo que o cristianismo é uma concepção e uma praxe transcendentes e ascéticas, e não reconhece poder algum humano superior a ele.

A política de Machiavelli foi acusada, muitas vezes, de imoralidade, o que é verdade, se se confrontar com uma concepção transcendente e ascética do mundo e da vida, como é a teísta e a cristã, e sim transcendentes (como todos os valores absolutos), não é o estado e sim Deus; e os meios para atingir o fim último não são substancialmente variáveis conforme as circunstâncias dos tempos e dos lugares, porquanto a moralidade, na sua essência, deriva da natureza racional do homem, essencialmente imutável.

Entretanto, a política de Machiavelli não está em contraste com uma ética humanista e imanentista, que não tem fins transcendentes e leis morais estáveis.

A doutrina política de Machiavelli todavia, conserva um grande valor também para a concepção transcendente do mundo e da vida, pois o estado, para a concretização dessa concepção transcendente da vida, é indispensável a fim de que o homem realize a sua natureza racional: é ético o estado, embora receba de Deus a sua eticidade transcendente, como de Deus, aliás, dependem todos os valores e todo o ser.

Entretanto, o estado, ainda que deva mirar a um ideal superior e imutável, tem que ter os pés sobre a terra, pisar na realidade concreta, variável, histórica. Deve organizar, disciplinar, valorizar os homens efetivamente egoístas e inclinados ao mal. Por isso, deverá ser leão ou raposa -no dizer de Machiavelli; terá de agir com força decidida e com refinada prudência, com base na profunda experiência humana.

E, por vezes, será preciso subordinar um princípio moral a outro princípio superior da moral (como, aliás, acontece também na moral individual no caso do assim chamado conflito dos deveres).

Neste sentido conceberá a política o piemontês João Botero (1540-1617) na sua obra Della ragione di stato, de conformidade com o espírito católico e concreto da Contra-Reforma. Nesta obra, por exemplo aconselha ele ao Príncipe ocultar prudentemente suas fraquezas eventuais, para conservar a reputação real; aconselha-o a respeitar plenamente a religião (católica), instrumento precioso, indispensável para tornar politicamente dóceis os homens, inclinados profundamente para o mal; bem como o aconselha a encaminhar para a milícia e para a guerra, a instintiva ferocidade humana.

 

Galileu Galilei

As ciências físicas e naturais, em geral, têm na Renascença a sua maior expressão em Leonardo da Vinci e, sobretudo em Galileu Galilei; pelo que diz respeito em especial à astronomia, em Copérnico e Kepler.

Leonardo da Vinci, nascido perto de Florença em 1452, exercitou a sua profissão de artista e técnico em Milão, em Florença, em Roma e na França onde faleceu em 1519. Não nos interessa como artista, mas como cientista, técnico e teórico da ciência.

Leonardo não deixou obras sistemáticas e editadas, e sim uma grande quantidade de apontamentos e bosquejos preciosos, publicados mais tarde, em que se revela um gênio soberano e um teórico genial. Aplicou ele imediatamente à técnica, ao domínio da natureza, seus princípios teóricos, em harmonia com os ideais e as conquistas da idade nova.

Leonardo fez uma notável quantidade de pesquisas e de invenções preciosas no campo das ciências: em matemática, física, mecânica, astronomia, geologia, botânica, anatomia, fisiologia, etc. Aplicou a matemática à física, convencido de que era mister partir da experiência, para chegar à razão, isto é, à matemática, que seria a razão que governa o mundo natural.

Entretanto, o grande metodólogo da ciência natural é Galileu Galilei, nascido em Toscana (Pisa) em 1564. Ensinou nas universidades de Pisa e de Pádua; a seguir, em Florença, como matemático e filósofo. Pela sua defesa do sistema astronômico de Copérnico (heliocêntrico) foi para Roma onde foi processado pelo Santo Ofício, que condenou aquele sistema (1616).

Galileu, tendo defendido com persistência o supradito sistema, foi processado e condenado novamente em 1633. Passou seus últimos anos de vida na vila de Arcetri, perto de Florença, onde faleceu em 1642. Entre suas obras são famosas: O Saggiatore (1623), livro polêmico contra os aristotélicos; o Diálogo sopra i due massimi sistemi del mondo (1632), que foi causa do segundo processo; e o Diálogo delle scienze nuove (1638).

Como Aristóteles e Tomás de Aquino, Galileu está convencido de que o conhecimento humano deve firmar-se na experiência; mas, diversamente daqueles dois filósofos que partem da experiência para transcendê-la e construir uma metafísica geral e especial, Galileu fica no âmbito da própria experiência; Galileu estuda o mundo não para conhecê-lo metafisicamente, isto é, para colher as essências imutáveis das coisas, mas fisicamente, isto é, para colher os fenômenos e suas leis.

Tais leis julga Galileu sejam as matemáticas; pois, o livro da natureza é escrito com caracteres que são “triângulos, quadrados, círculos, esferas, cones, pirâmides e outras figuras matemáticas muito aptas para tal leitura”. Daí a explicação da matemática à física, resultando assim a físico-matemática: o que constituirá o elemento verdadeiramente racional, universal e necessário da ciência moderna, e será tão fecundo em resultados práticos, técnicos.

Para constituir a ciência, portanto, é mister a experiência e a razão, sentido e discurso, como diz Galileu. Quanto ao procedimento metódico e particular para construir a ciência, Galileu distingue três momentos principais: a) a observação; b) a hipótese; c) a experimentação, que é a verificação da hipótese. Esta, quando confirmada experimentalmente, transforma-se em lei.

A ciência galileiana é, por conseguinte, quantitativa, a saber, o seu princípio racional é matemático: é físico-matemática, mecânica. O que é irredutível à quantidade é considerado como subjetivo, escapando ao alcance da físico-matemática.

Galileu considera objetivas as propriedades geométrico-mecânicas: a figura, o tamanho, a posição, o movimento, o número – que serão mais tarde chamadas qualidades primárias; ao passo que considera subjetivas (transformação das objetivas por obra dos nossos órgãos sensoriais) as propriedades qualitativas: a cor, o som, o sabor, o frio, o calor – que serão mais tarde chamadas qualidades secundárias.

Como é sabido, a doutrina astronômica heliocêntrica chama-se copernicana, sendo seu verdadeiro fundador Copérnico. Nicolau Copérnico nasceu em Thorn, na Polônia, em 1473. Estudou em vários lugares, especialmente na Itália. De volta à pátria, retirou-se para Frauenburg, onde era cônego, e dedicou-se às meditações astronômicas, cujo resultado publicou na famosa obra De obrium coelestium revolutionibus, publicada em 1543 e dedicada ao papa.

O seu sistema astronômico pode ser assim resumido: o mundo é esférico, finito; todos os corpos celestes são esféricos; o movimento dos corpos celestes é circular e uniforme; o Sol está imóvel no centro do sistema e giram-lhe em volta os planetas e também a Terra que tem duplo movimento: diurno em volta do próprio eixo, anual em volta do Sol .

Ele também segue o princípio de que a natureza é governada por leis matemáticas: ubi materia, ibi geometria. Caberá mais tarde a Newton completar o sistema com a grande lei da gravitação universal, que explica o equilíbrio dos corpos celestes.

 

A Ciência Nova e a Metafísica Tradicional

O atomismo mecânico, que Galileu pressupôs para a sua gnosiologia empirista-matemática, está evidentemente em contraste com o seu fenomenismo, porquanto constitui sempre uma filosofia da natureza, contrariamente ao afirmado agnosticismo galileiano sob este aspecto cientificamente fecundo. E tal atomismo mecânico está logicamente em contraste com a convicção religiosa de Galileu, pois o atomismo mecânico implica evidentemente uma concepção materialista da realidade.

Com Galileu começa a tendência da filosofia moderna – que se manifestará claramente no racionalismo de Descartes, Spinoza, Leibniz, etc. – de reduzir a metafísica à física, pela pretensão de explicar tudo matematicamente e considerar a ordem matemática como a ordem ideal da realidade.

Pretensão evidentemente infundada, porquanto não se podem reduzir à quantidade o espírito, Deus, a alma nem sequer o elemento qualitativo da realidade empírica. Será mister, portanto, que a ciência moderna, mesmo no seu aspecto racional-matemático, adquira consciência da sua limitação, permanecendo entre os limites da experiência, e não pretenda tornar-se metafísica.

E destarte será ela inteiramente valorizável e conciliável com a metafísica tradicional aristotélico-tomista. Esta, por sua parte, terá de se libertar de igualmente infundada pretensão de que também a ciência natural seja filosofia, metafísica. Deste modo, poderá logicamente separar-se da física aristotélica e da astronomia ptolemaica, com que estava de fato, e se julgava de direito, ligada, liame este que, historicamente, sobremaneira prejudicou à metafísica tradicional na idade moderna, como ficou evidente também pelo famoso processo de Galileu.

Neste processo não há duvidar da boa fé de Galileu, católico convicto, nem da dos seus juízes, entre os quais se destaca São Roberto Belarmino. Em todo caso devemos prescindir de tais questões práticas, pessoais, que não concernem à história da filosofia, cujo objeto próprio são as idéias, os sistemas, e não os homens e suas intenções.

Temos, de um lado, uma sólida filosofia, que se julgava, sem razão, conexa necessariamente com a ciência da época, cuja ruína, julgava-se erroneamente, acarretaria consigo a ruína da filosofia, que constituía a base racional da religião. E temos, do outro lado, uma ciência prodigiosa, que, erradamente, se punha em contradição com a filosofia tradicional e em conexão com a nova filosofia humanista e imanentista.

Tenha-se, acima de tudo, presente a tese geral do matematismo universal, com suas inevitáveis conseqüências materialistas, e a outra tese da infinidade dos mundos, que, erradamente, se julgava derivar do sistema copernicano, heliocêntrico. Acrescenta-se a tudo isso, por parte da igreja católica, o temor da crítica demolidora, que teve tão grave manifestação no livre exame protestante – temor confirmado pela veleidade de interpretação da Sagrada Escritura, por parte de Galileu, para ajustá-la à nova astronomia. E se compreenderá então historicamente o processo e a condenação de Galileu.

A oposição entre sistema ptoleimaco e sistema copernicano, entre a filosofia tradicional e a ciência nova, cessaria no dia em que se adquirisse consciência da natureza infrafilosófica, afilosófica, indiferente, da ciência, se permanecer nos limites da experiência – como deve ser – e se tivesse consciência da sua relatividade. A ciência, portanto, não pode vir a estar em contraste com a filosofia e a teologia, cujo objeto é metafísico; conseqüentemente pode-se e deve-se compor a filosofia tradicional com a ciência nova.

 


Referências Bibliográficas:

DURANT, Will. História da Filosofia – A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.

FRANCA S. J. Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.

PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.

VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.

JAEGER, Werner. Paidéia – A Formação do Homem Grego, Martins Fontes, São Paulo, 3ª edição, 1995.

Coleção Os Pensadores. Nicolau Maquiavel: O Príncipe – Escritos Políticos, Nova Cultural, São Paulo, 1999.

Coleção Os Pensadores. Galileu Galilei: O Ensaiador, Nova Cultural, São Paulo, 1999.

 

© Texto Produzido Por Rosana Madjarof – 2000 – Respeite os Direitos Autorais

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