Falácias e Utopias da Justiça e dos Direitos Humanos – Parte 1
I. Constituição, Utopia e Social-democracia.
O presente texto, tem por objetivo trazer à lume alguns tópicos da Filosofia do Direito na obra de Thomas More, fazendo com que o legado jusfilosófico venha, de alguma forma, contribuir não só para o desenvolvimento da problemática jurídica enquanto questão essencialmente teórica, como também na aplicação do Direito enquanto realização do justo, principalmente no que tange aos ditames do artigo 3° da Constituição Federal.
A social-democracia, tal como a conhecemos até o final do século XX é, sabidamente, um resultado histórico bastante complexo. Conforme veremos, esta social-democracia, com todas as suas Leis, Códigos e Constituições, é a expressão mais inacabada de uma sociedade histórica e, seus pressupostos são, efetivamente, aqueles que podem configurar qualquer perspectiva transcendente em direção a uma sociedade repleta de parâmetros e paradigmas que nos levam a acreditar em uma sociedade justa e digna, ou seja, uma sociedade utópica.
Queremos mostrar o quão utópico, injusto e desigual se mostra o baluarte maior de nossa garbosa sociedade e, logo ali no exórdio, deparamo-nos com um dispositivo de importância impar. Ei-lo:
Art. 3°. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
- construir uma sociedade livre, justa e solidária;
- garantir o desenvolvimento nacional;
III. erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Acreditando que a lei natural, ainda que não seja uma lei escrita, fundamenta-se no ser e na inteligência, não em uma vontade arbitrária, muito menos em poder voluntarista e, tendo como princípio próximo a própria natureza do ser, pressupomos que o pensamento renascentista sugere uma nova forma de jusnaturalismo para os dias atuais, onde os valores intelectuais do indivíduo e da sua liberdade devam ser considerados com relevância em função da sua importância na promoção de ambientes justos e dignos, onde se possa cultivar a Paz e erradicar as desigualdades sociais de forma ampla e irrestrita, possibilitando-nos traçar alguns parâmetros entre os ditames do artigo 3° da Constituição e os Direitos Humanos.
Cumpre-nos, inicialmente, situar Thomas More dentro do panorama filosófico de sua época para que possamos ter uma visão contextualizada da importância de sua obra comparada aos dias atuais.
Thomas More, escritor e estadista inglês nasceu em Londres (1478 – 1535). Ocupou o cargo de lorde chanceler, o mais alto posto judicial na Inglaterra, de 1529 a 1532. More renunciou porque se opôs ao plano de Henrique VIII de divorciar-se da rainha.
A filosofia de More encontra-se exposta com maior clareza em seu livro Utopia (escrito em latim em 1516), onde ele descreve a enorme onda de criminalidade que assolava a Inglaterra, na época em que ele viveu, época essa marcada igualmente pela truculência oficial, com a aplicação sumária da pena de morte.
A Utopia é a apresentação de uma sociedade ideal, onde haveria justiça e igualdade para todos os cidadãos. Essa obra-prima introduziu a palavra utopia nas línguas européias.
Na Renascença, a filosofia clássica foi estudada de forma bem diferente dos estudos da filosofia medieval. A par das re-interpretações de Platão e Aristóteles, os humanistas voltaram-se para filósofos que tinham sido deixados de lado ou mesmo condenados na Idade Média.
Em sua obra principal, a Utopia, podemos observar o retorno do epicurismo e da filosofia estóica. Entretanto, não se deve pensar que ele nada acrescentou às idéias antigas. Ao contrário, estabeleceu as bases do epicurismo cristão, acrescentando contribuições platônicas – Platão era seu filósofo favorito – que já haviam sido, por assim dizer, cristianizadas: crença na providência divina, na imortalidade da alma e na recompensa depois da morte.
Epicuro, ao contrário, descreveu deuses que nada tinham a ver com os homens e que não poderiam ajudá-los a encontrar qualquer bem.
More descreve uma ilha chamada Utopia, cujos habitantes consideram virtude procurar obter sempre o maior prazer. É absurdo sofrer voluntariamente, considerar virtude renunciar aos prazeres terrenos e não esperar recompensa após a morte pelos males que sofreram no mundo.
A virtude consiste em procurar o prazer natural, seja ele dos sentidos ou da razão, compreendendo quais os bens que se pode ter sem injustiça e que não acarretem males. As idéias estóicas podem ser observadas na importância atribuída pelos utopianos ao viver de acordo com a natureza, ao espírito comunitário natural do ser humano e na extrema atenção dada ao problema da virtude.
Thomas More revelou-se um perfeito humanista, enquanto associou, na Utopia, o paganismo epicurista e estoicista clássicos às idéias cristãs.
Observando e criticando a estrutura econômica da Inglaterra, o autor propõe uma sociedade utópica, cujos habitantes vivam num regime de comunidade de bens. Os habitantes não possuem suas casas: a cada dez anos, as moradias são sorteadas e as pessoas trocam de casa, abolindo-se, assim, a idéia de propriedade privada.
Tudo o que for produzido pelos cidadãos de um quarteirão é levado a um mercado nele existente, abastecendo gratuitamente as famílias locais. Ninguém se apropria de mais do que necessita, porque nada lhes é negado; assim, sendo garantida a subsistência. A ganância, tão comum aos homens, não se desenvolve entre essas pessoas.
A forma de governo é a democracia: os magistrados são eleitos e as leis não podem ser votadas antes de três dias. É proibido reunir-se fora do Senado e das Assembléias populares e a pena para a desobediência à essa ordem é a morte.
Procurando encontrar uma forma de sociedade melhor que as existentes na Europa, More descreveu Instituições Públicas que visavam impedir o abuso de autoridade, as leis tirânicas ou as mudanças de forma de governo.
A religião da Utopia é permissiva, isto é, seus habitantes podem professar diferentes crenças, desde a adoração de forças da natureza até a crença em um único Deus. Todas as religiões são respeitadas e não existe conflito entre elas. Não há uma religião oficial do Estado e, assim, estabelece-se a tolerância religiosa.
Embora haja preconizado a tolerância religiosa, Thomas More não foi adepto da Reforma e, por causa de suas firmes convicções e independência diante do poder, acabou sendo destituído do cargo de chanceler, quando discordou de Henrique VIII sobre a separação da Igreja inglesa da autoridade do Papa.
Foi preso e decapitado, 1535, quando discordou do divórcio do rei de Catarina de Aragão, para validar seu casamento com Ana Bolena. Desde então, More tornou-se um exemplo do indivíduo que coloca a consciência acima dos direitos da autoridade secular. Foi canonizado em 1935, como mártir da Igreja Católica em defesa da liberdade de pensamento.
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Bibliografia Sugerida:
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional.São Paulo: Atlas, 9 ed., 2001.
MORE, Thomas. Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 4 ed., 2001.
NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 8 ed., 2000.
SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Lições de Introdução ao Direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2 ed., 2000.
SOARES, Orlando. Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 5 ed., 1991.
© Texto Produzido Por Rosana Madjarof – 10/09/2002 – Respeite os Direitos Autorais