Os Pensadores Renascentistas
Do fundo eclético-neoplatônico do pensamento da Renascença se destacavam algumas figuras de maior vulto, cuja série começa com Nicolau de Cusa e termina com Giordano Bruno. É uma nova concepção filosófica do mundo e da vida, ainda não bem claramente esboçada, de que seus próprios autores, às vezes, não têm clara consciência. É uma época de transição, em que novo e velho se entretecem mutuamente.
Os sistemas filosóficos da época conservam a linguagem (latim) e a estrutura (silogística) da idade precedente. As intuições e afirmações naturalistas, humanistas e imanentistas estão ao lado das profissões de fé católica, feitas por motivos práticos, éticos e utilitários. Entretanto, debaixo dessas aparências, germina o pensamento moderno. É o crepúsculo que prenuncia a alvorada de um novo dia.
Nicolau de Cusa
Nicolau Krebs nasceu em 1401 em Cusa, de família modesta. Foi educado junto dos Irmãos da vida comum em Deventer, onde sofreu a influência do misticismo alemão; em seguida estudou na Universidade de Heidelberg, foco de nominalismo, e na de Pádua, onde aprendeu a matemática, o direito, a astronomia. Ordenado padre, teve parte notável no concílio de Basiléia (1432); foi, a seguir, legado pontifício, cardeal, bispo. Viveu seus últimos anos na Itália, onde faleceu em 1464.
As obras fundamentais de Nicolau de Cusa são três: De docta ignorantia, De conjecturis, Apologia doctae ignorantiae. As fontes prediletas e principais são o misticismo alemão (Mestre Eckart), o platonismo e o neoplatonismo cristão (Santo Agostinho, Pseudo Dionísio, Scoto Erígena, São Boaventura), e os autores de tendência neoplatônica, em geral.
Nicolau de Cusa admite, acima dos sentidos, dois graus do saber humano; a ratio e o intellectus. A ratio – ou intelecto discursivo – é a faculdade que abstrai das noções particulares os conceitos universais, e forma, em seguida, os juízos e os raciocínios. O seu objeto próprio é o conhecimento da multíplice e do finito. No entanto, também a coisas finitas são imperfeitamente representadas pela ratio, cujo conhecimento se realiza mediante conceitos universais, ao passo que a realidade é constituída por seres individuais. Deus, uno e infinito, não pode certamente ser conhecido pela ratio, cujo objeto é o multíplice e o finito.
Acima da ratio está o intellectus, atividade supra-racional iluminada pela fé ou pela mística, cujo objeto próprio é o Uno e o infinito, Deus. O agnosticismo de Nicolau de Cusa é, portanto, corrigido pelo fideísmo e pelo misticismo. A docta ignorantia consiste precisamente na consciência dos limites e da relatividade da ratio, cujas deficiências são supridas pelo intellectus. Entretanto, esta iluminação é sobrenatural e nada tem que ver com a filosofia, nem é de modo nenhum fundamentada por Cusano. Admitindo, pois, ele, que a razão não nos dá a realidade, segue-se logicamente que a sua filosofia deve finalizar no agnosticismo gnosiológico, e no panteísmo metafísico.
Por certo, o piedoso cardeal foi, na intenção, ortodoxo, teísta, católico. Entretanto, o seu sistema encerra fatalmente uma tendência para o panteísmo. De fato, foi ele acusado de panteísmo emanatista, quando ainda vivia.
Bernardino Telésio
Mais claramente manifesta-se o imanentismo da Renascença – em seu aspecto naturalista – em Bernardino Telésio . Nasceu em 1509 em Cosenza, estudou especialmente em Pádua e faleceu em 1588. A sua obra fundamental é De rerum natura iuxta propria principia. O pensamento de Telésio representa uma sistematização do naturalismo da Renascença: a saber, uma tentativa para explicar a natureza mediante os princípios universais imanentes à mesma natureza.
O mundo natural é constituído de matéria e de força. A matéria é homogênea, preenche o espaço (que existe antes da matéria) e é por si mesma inerte. A força anima, penetra, move, transforma continuamente toda a matéria.
O intelecto é reduzido aos sentidos, bem como o conceito universal é reduzido à sensação. Como é naturalizado o pensamento, é também naturalizada a vontade, no sentido materialista e hedonista.
Entretanto, haveria no homem também uma alma que transcende a natureza e o mundo material, criada e infundida por Deus. Por conseguinte, o homem pode pensar e querer o supra-sensível, o eterno, e dominar com a vontade livre as tendências naturais. Desse modo, acima da ciência é posta e justificada a fé e a revelação.
Giordano Bruno
Giordano Bruno é a maior expressão do imanentismo renascentista. Nasceu em Nola em 1548, entrou na Ordem dos Dominicanos aos 15 anos. Acusado de heresia e afastado de sua ordem, iniciou uma vida giróvaga através da Europa. De volta a Veneza, foi processado pelo tribunal da Inquisição e reconheceu os seus erros. Entregue à Inquisição romana, foi de novo processado; mas, desta vez, recusou qualquer retratação e foi condenado à morte, que lhe foi infligida em 1600.
As obras principais de Bruno são: De la causa principio e uno; De l’infinito, universo e mondi; Eroici furori; De immenso et innumerabilibus. As fontes de Bruno são: o monismo eleático e heraclíteo; o atomismo democríteo; o panteísmo estóico; o emanatismo neoplatônico; o naturalismo telesiano.
A metafísica de Bruno é decididamente monista, pampsiquista e pan-materialista. A realidade é una e infinita, constituída por dois princípios fundamentais, ativo um – a alma do mundo -, passivo o outro – a matéria. São dois aspectos da mesma substância. A alma do mundo é concebida como sendo inteligente, ordenadora do mundo; mas não é transcendente, como o motor primeiro de Aristóteles e o Deus do cristianismo, e sim imanente ao mundo, de que é precisamente a alma.
O Deus de Bruno é, pois, esta alma do mundo, concebida como imutável e infinita, gerando eternamente o mundo finito e que se acha em perpétuo vir-a-ser. As almas particulares não passam de individuações passageiras dessa alma cósmica. Acima desse Deus imanente, também Bruno afirma a existência de um Deus transcendente, apreendido só por fé, trata-se, porém, de uma fé imanente naturalista, bem diversa da fé cristã.
Com a metafísica de Bruno estão em conexão a sua gnosiologia e a sua moral. Na sua teoria do conhecimento Bruno distingue – neoplatonicamente – quatro graus, em ordem hierárquica ascendente. São eles:
Os sentidos, cujo objeto é o sensível, e a verdade que manifesta é mera aparência; A razão, mediante a qual a verdade é atingida por processo dialético, discursivo, sucessivo; O intelecto, que tem a intuição imediata da verdade; A mente, que atinge a verdade na sua unidade e simplicidade absoluta.
Quanto à moral deve-se dizer o seguinte: na moral de Bruno aparece de um modo característico o imanentismo e o humanismo do pensador. Bruno, em oposição à moral ascética e transcendente do cristianismo, sustenta que o homem realiza a sua natureza, atinge a sua perfeição no furor heróico, a saber, na sua imanente e jubilosa participação racional na vida do Todo-um.
É, pois, natural, que Bruno considere toda religião histórica, positiva (inclusive o cristianismo), como um saber infra-racional, mítico, simbólico, útil para dirigir moralmente o vulgo ignorante, e não como uma revelação supra-racional de um Deus transcendente. Pois não é isto possível no seu sistema imanentista.
Tommaso Campanella
Tommaso Campanella nasceu em Stilo, na Calábria, em 1568, e também ele entrou ainda moço na ordem dos Dominicanos. É o maior continuador de Telésio. Várias vezes processado por heresia, foi, porém, absolvido; entretanto, condenaram-no por motivos políticos e passou no cárcere 27 anos, sendo, enfim, libertado. Suas obras principais são: Civitas solis; Universalis philosophia seu metaphisicarum rerum iuxta propria dogmata partes tres; De sensu rerum et magia libri X.
As fontes principais do seu pensamento são: o naturalismo telesiano e o idealismo neoplatônico. Mais do que os pensadores precedentes, Campanella parece oscilar entre imanentismo e catolicismo, devido ao fato de que se acha ele já no clima espiritual da contra reforma católica. E como Giordano Bruno prenuncia a Spinoza, assim Campanella prenuncia a Descartes, Malenbranche e Leibniz, marcando destarte a passagem da Renascença à Idade Moderna.
Quanto à gnosiologia, Campanella diz o seguinte: Admite ele um sensus inditus e um sensus additus. O primeiro oferece um conhecimento imediato de si mesmo; é um conhecimento fundamental, certíssimo, visto que o objeto coincide com o sujeito. Entretanto, o conhecimento do eu, a consciência, revela imediatamente as limitações do eu e, logo, a existência as coisas que limitam o eu. Estas coisas são conhecidas pela percepção externa, isto é, pelo sensus additus que nos dá um conhecimento mediato das coisas. Este, porém, não nos revela a natureza das coisas, e sim o sujeito modificado pelas coisas.
Ainda inferiores ao sensus additus, pela certeza, são o intelecto e a razão, porque ainda mais se afastam do sensus inditus, da imediata intuição de si mesmo. A razão, a saber, o poder de inferir o semelhante do semelhante, é um sentido imperfeito; o intelecto, a saber, o conhecimento do universal é um sentido elanguescido, pois o universal é uma noção genérica e confusa, cujo valor é unicamente prático, cômodo para resumir vários particulares. Campanella, como Telésio, desvaloriza a razão e o intelecto e admite, ao lado e acima deles, um princípio divino, uma mente, o pensamento, que desempenha a função de garantir o nosso conhecimento e libertar-nos do ceticismo.
Quanto à metafísica, salientamos que Campanella afirma de novo e acentua a animação universal, o pampsiquismo telesiano. Propriamente, a metafísica de Campanella é a doutrina dos primeiros princípios do ser; são eles o poder, a sabedoria, o amor. Tais princípios são absolutos e puros em Deus, relativos e imperfeitos nas criaturas. Daí as coisas e o espírito serem uma mistura de ser e de não-ser (ser limitado), ao passo que Deus é puro ser (ser infinito).
Sobre essa nossa limitação ontológica, Campanella alicerça a religião, que é aspiração do ser limitado para o ser infinito. Para Campanella, a religião fundamental é a religião natural, racional; as religiões positivas, históricas, seriam expressões empíricas da religião natural. A característica essencial da própria revelação cristã e da igreja católica seria a restauração da religião natural, racional, universal, obscurecida pela ignorância e pela concupiscência. Portanto, o cristianismo seria reduzido à religião natural, a que a Renascença em geral aspira.
Tal concepção filosófico-religiosa de Campanella teve uma expressão prática, política e pedagógica, na Cidade do Sol (Civitas solis), em que é exposta a sua utopia teocrático-comunista. Imagina ele uma república ideal, professando uma religião natural, governada por leis universais, em que, à maneira de Platão, o sábio é, ao mesmo tempo, monarca e sacerdote. Mais tarde, essa sua utopia teocrático-filosófica tomará uma forma teocrático-católica, com o papa à frente.
Entretanto, o papa é concebido mais como chefe concreto de uma religião natural, do que como chefe de uma religião positiva e sobrenatural, como o cristianismo. Campanella viveu longamente na prisão, afastado da vida real; suas obras, escritas no cárcere, manifestam uma mentalidade fantástica, idealista, utópica, em que falta a experiência de uma vida social-concreta. “Tumultuária e aventurosa em muitos pontos – escreve Leonel Franca – a obra de Campanella encerra não poucas idéias aproveitáveis. Cabe-lhe a prioridade de várias teorias, atribuídas depois a Descartes e Bacon”.
Referências Bibliográficas:
DURANT, Will. História da Filosofia – A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA S. J. Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.
JAEGER, Werner. Paidéia – A Formação do Homem Grego, Martins Fontes, São Paulo, 3ª edição, 1995.
© Texto Produzido Por Rosana Madjarof – 1998 – Respeite os Direitos Autorais