As Medições de René Descartes
A Dúvida – Exercício Espiritual
Primeira Meditação – Descartes resolve duvidar de todas as suas opiniões
Mas não basta ter feito essas observações, é preciso ainda que eu cuide de não me esquecer delas; pois essas antigas e comuns opiniões frequentemente revivem em meu pensamento, a longa e familiar convivência que tiveram comigo, o que lhes dá o direito de ocupar o meu espírito sem que eu o queira e de quase se tornarem senhoras de minha crença.
E nunca me desacostumarei a essa aquiescência e a confiar nelas, enquanto eu as considerar tais como efetivamente são, isto é, de certo modo duvidosas, como acabei de provar, e, no entanto, muito prováveis, de maneira que se tenha mais razão em acreditar nelas do que em negá-las.
Eis por que penso que as utilizarei mais prudentemente se, tomando um partido contrário, empregar todos os esforços no sentido de enganar-me a mim mesmo, fingindo que todos esses pensamentos são falsos e imaginários; até que, tendo de tal modo avaliado meus preconceitos, eles não possam fazer com que minha opinião tenda mais para um lado do que para outro, e meu julgamento não mais seja, daqui por diante, dominado por maus usos e afastado do caminho reto que o pode conduzir ao conhecimento da verdade.
Pois estou certo de que, no entanto, não pode haver perigo nem erro nesse caminho e de que eu hoje não poderia conceder muito à minha desconfiança, uma vez que, no momento, não se trata d agir, mas somente de meditar e de conhecer.
Suporei, então, que há, não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as coisas exteriores que vemos não passam de ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade.
Considerar-me-ei a mim mesmo como não tendo mãos, nem olhos, nem carne, nem sangue, como não tendo nenhum dos sentidos, mas acreditando falsamente possuir todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e, se por esse medo, não estiver em meu poder atingir o conhecimento, de nenhuma verdade, pelo menos estará em meu poder fazer a suspensão de meu juízo.
Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu espírito em face de todos os ardis desse grande enganador que, por mais poderoso e astucioso que seja, nunca poderá impor-me coisa alguma.
Mas esse desígnio é árduo e trabalhoso, e certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo de minha vida comum. E, exatamente como o escravo que se comprazia no sonho de uma liberdade imaginaria e que, quando começa a suspeitar que essa liberdade é apenas um sonho, teme ser despertado e conspira com essas agradáveis ilusões para ser mais longamente enganado, assim eu, por mim mesmo, retorno invisivelmente às minhas antigas opiniões e receio despertar dessa sonolência, temendo que as vigílias laboriosas que se sucederiam à tranqüilidade de tal repouso, ao invés de propiciarem alguma luz ou alguma clareza no conhecimento da verdade, não fossem suficientes para aclarar as trevas das dificuldades que acabam de ser tratadas.
Segunda Meditação: Eu Sou Uma Coisa Que Pensa
Eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, corpos alguns; também não me persuadi de que eu não existia? É certo que não, eu existia sem dúvida, se é que me persuadi ou somente pensei alguma coisa. Mas há um não sei quem, enganador muito poderoso e astucioso, que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre.
Por conseguinte, não há a menor dúvida de que sou, se ele me engana; e, por mais que ele queira enganar-me, nunca poderá fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De maneira que, após ter pensado bastante nisto e ter cuidadosamente examinado todas as coisas, há que concluir finalmente e ter por constante que esta proposição, “Eu sou, eu existo”, é necessariamente verdadeira, todas as vezes em que a enuncio ou em que a concebo em meu espírito.
Mas ainda não conheço bastante o que sou, eu, que estou certo de que sou; de maneira que, de agora em diante, é preciso que eu atente cuidadosamente, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim e assim não me equivocar nesse conhecimento que sustento ser mais certo e mais evidente do que todos os que tive até o momento.
Eis por que considerarei de novo o que acreditava ser, antes de penetrar nesses últimos pensamentos; e de minhas antigas opiniões abolirei tudo o que pode ser combatido pelas razões que há pouco aleguei, de maneira a só permanecer precisamente o que é inteiramente indubitável. Por conseguinte, que é que eu acreditava ser até aqui? Sem dificuldade, eu pensei que era um homem.
Mas que é um homem? Direi que é um animal racional? Não, certamente; pois seria necessário que em seguida pesquisasse o que é animal e o que é racional e assim, de uma só questão, cairíamos insensivelmente numa infinidade de outras mais difíceis e embaraçosas, e eu não gostaria de abusar do pouco tempo e do lazer que me resta, empregando-o em desvendar semelhantes sutilezas.
Mas, antes, deter-me-ei em considerar aqui os pensamentos que anteriormente nasciam por si mesmos em meu espírito e que eram inspirados apenas por minha natureza quando eu me empenhava na consideração de meu ser. Considerava-me, primeiramente, como tendo um rosto, mãos, braços e toda essa máquina composta de osso e carne, tal como ela aparece num cadáver e a qual eu designava pelo nome de corpo.
Por outro lado, considerava que eu me alimentava, que andava, que sentia e que pensava, relacionando todas essas ações à alma; mas não me detinha em pensar o que era essa alma ou, então, se aí me demorava, imaginava que ela era algo de extremamente raro e sutil, como um vento, uma chama ou um ar muito tênue, que estava insinuado e disseminado nas minhas partes mais grosseiras.
No que se referia ao corpo, eu não duvidava de modo algum de sua natureza; pois eu pensava conhecê-la mui distintamente e, se quisesse explicá-la segundo as noções que tinha dela, tê-la-ia descrito da seguinte maneira:
- por corpo, entendo tudo o que pode ser limitado por alguma figura;
- que pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espaço de tal maneira que todo outro corpo seja dela excluído;
- que pode ser sentido pelo tato, ou pela visão, ou pela audição, ou pelo paladar, ou pelo olfato;
- que pode ser movido por diversas maneiras, não por si mesmo, mas por algo alheio pelo qual seja tocado e do qual se pudesse atribuir à natureza corpórea vantagens como a de ter o poder de mover-se a si própria;
- ao contrário, espantava-me antes ao ver que semelhantes faculdades se encontravam em certos corpos.
Mas eu, que sou eu, agora que suponho que há alguém que é extremamente poderoso e, se ouso dizê-lo, malicioso e astucioso, que emprega todas as suas forças e toda a sua indústria em enganar-me? Poderei ter a certeza de possuir a menor de todas as coisas que acima atribuí à natureza corpórea? Detenho-me a pensar nisso em meu espírito, e não encontro nenhuma que possa dizer que existe em mim.
Não é necessário que me demore a enumerá-las. Por conseguinte, passemos aos atributos da alma e vejamos se há alguns que existam em mim.
Os primeiros são alimentar-me e andar; mas se é verdade que não tenho corpo algum, também é verdade que não posso andar nem me alimentar. Um outro é sentir; mas não se pode sentir também sem o corpo; além disso, outrora eu pensei sentir várias coisas durante o sono e verifiquei, ao despertar, que não as sentira efetivamente. Um outro é pensar; e constato aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; somente ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo; isso é certo; mas por quanto tempo?
A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois poderia ocorrer que, se eu deixasse de pensar, eu deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Agora eu nada admito que não seja necessariamente verdadeiro: portanto, eu não sou, precisamente falando, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era desconhecida anteriormente.
Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. E que mais? Excitarei ainda minha imaginação, para verificar ainda se não sou algo mais.
Eu não sou essa reunião de membros que se chama corpo humano; não sou um ar tênue e penetrante, disseminado por todos esses membros; não sou um vento, um sopro, um vapor nem nada que possa fingir e imaginar, uma vez que supus que tudo isso não era nada e que, sem modificar tal suposição, constato que não deixo de estar certo de que sou alguma coisa.
Terceira Meditação: O Pedaço de Cera
Comecemos pelas considerações das coisas mais comuns e que julgamos compreender mais distintamente, e saber, os corpos que tocamos e que vemos. Não pretendo falar dos corpos em geral, uma vez que essas noções gerais comumente são mais confusas, mas de qualquer corpo em particular.
Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da colméia: ele ainda não perdeu a doçura do mel que continha, ainda retém algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura e sua grandeza são evidentes: ele é duro e frio quando o tocamos e, se nele batermos, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo, encontram-se neste.
Mas eis que, enquanto falo, alguém o aproxima do fogo: o que nele restava de sabor, exala-se, o odor se desvanece, sua cor se modifica, sua figura se perde, sua grandeza aumenta, ele se torna líquido, esquenta-se, mal podemos tocá-lo, e, ainda que batamos nele, não produzirá som algum.
A mesma cera permanece após essa transformação? Cumpre confessar que sim; e ninguém o pode negar. Que é, então, que conhecíamos nesse pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada do que observei nela por intermédio dos sentidos, uma vez que todas as coisas que se apresentavam ao paladar, ou ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição se encontram modificadas e, no entanto, a mesma cera permanece.
Talvez fosse o que penso a atualmente, a saber, que a cera não era essa doçura do mel, nem esse agradável perfume das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse som, mas apenas um corpo que, pouco antes, se apresentava sob essas formas e que agora se faz notar sob outras. Mas o que será, precisamente falando, que eu imagino quando a concebo dessa maneira?
Consideremo-la atentamente e, afastando todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos o que resta. É certo que não permanece senão algo de extenso, de flexível e mutável. Ora, que é isso: flexível e mutável? Não estarei imaginando que esta cera, sendo redonda, é capaz de se tornar quadrada e de passar do quadrado para uma figura triangular?
É certo que não, não é isso, uma vez que a concebo capaz de receber uma infinidade de transformações semelhantes e, no entanto, eu não poderia percorrer essa infinidade com minha imaginação e, conseqüentemente, essa concepção que tenho da cera não se realiza pela faculdade de imaginar.
E, agora, que é essa extensão? Não será também desconhecida, visto que na cera que se funde ela aumenta e fica ainda maior quando aquela está inteiramente fundida e muito mais ainda quando o calor aumenta mais? E eu não conceberia claramente, e segundo a verdade, o que é a cera; se não pensasse que é capaz de receber mais variedades segundo a extensão do que nunca imaginei.
Por conseguinte, é preciso que eu concorde que não poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera, e que só meu entendimento é quem o concebe.
Quarta Meditação: A Liberdade
O que existe unicamente é a vontade que sinto ser tão grande em mim, que não concebo de modo algum a idéia de nenhuma outra mais ampla e mais extensa: de maneira que é ela, principalmente que me faz conhecer que trago a imagem e a semelhança de Deus.
Pois, ainda que ela seja incomparavelmente maior em Deus do que em mim, seja em virtude do conhecimento e do poder – que, encontrando-se juntos aí, a tornam mais firme e mais eficaz – seja em virtude do objeto, na medida em que ela se dirige e se estende infinitamente a mais coisas; ela não me parece todavia maior se eu a considero formal e precisamente em si mesma.
Pois ela consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazê-la (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir), ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir as coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal modo que não sentimos de maneira alguma força exterior que nos obrigue a isso.
Pois, para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou outro dos dois contrários; mas, antes, quanto mais eu tender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o bem e o verdadeiro aí se encontram, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei. É certo que a graça divina e o conhecimento natural, bem longe de diminuírem minha vontade, antes a aumentam e a fortalecem.
De modo que essa indiferença que sinto, quando não sou de maneira alguma impelido mais para um lado do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau de liberdade, e faz antes parecer uma carência de conhecimento do que uma perfeição na vontade; pois, se eu sempre conhecesse claramente o que é verdadeiro e o que é bom, nunca teria dificuldade em deliberar qual juízo e qual escolha deveria fazer; e, assim, eu seria inteiramente livre, sem nunca ser indiferente.
Quinta Meditação: O Argumento Ontológico
Ora, agora, se do simples fato de que posso tirar de meu pensamento a idéia de alguma coisa, segue-se que tudo o que eu reconheço pertencer clara e distintamente a essa coisa, pertence-lhe efetivamente, não posso tirar daí um argumento e uma prova demonstrativa da existência de Deus?
É certo que não encontro menos em mim sua, isto é, a idéia de um ser soberanamente perfeito, do que a idéia de qualquer figura ou de qualquer número que seja. E não conheço menos clara e distintamente que uma atual e eterna existência pertence à sua natureza do que conheço que tudo o que posso demonstrar de qualquer figura ou de qualquer número pertence verdadeiramente à natureza dessa figura ou desse número.
E, portanto, ainda o que tudo que concluí nas Meditações precedentes não fosse absolutamente verdadeiro, a existência de Deus deve apresentar-se em meu espírito pelo menos como tão certa quanto considerei até aqui todas as verdades da matemática, que só dizem respeito aos números e às figuras: se bem que, na verdade, isso, de início, não pareça inteiramente manifesto, que se afigure com alguma aparência de sofisma.
Pois, estando habituado em todas as outras coisas a fazer distinção entre existência e essência, persuado-me facilmente de que a existência pode ser separada da essência de Deus e que, assim, se possa conceber Deus como não existindo atualmente.
Todavia, quando penso nisso com mais atenção, verifico claramente que a existência não pode ser separada da essência de um triângulo retilíneo não pode ser separada a grandeza de seus três ângulos iguais a dois retos ou, da idéia de uma montanha, a idéia de um vale; de maneira que não há menos repugnância em conceber um Deus (isto é, um ser soberanamente perfeito) ao qual falta a existência (isto é, ao qual falta alguma perfeição) do que em conceber uma montanha que não tenha um vale.
Mas, ainda que efetivamente eu não possa conceber um Deus sem existência, assim como uma montanha sem vale, todavia, como do simples fato de eu conceber uma montanha com um vale não se segue que haja qualquer montanha no mundo, do mesmo modo, embora eu conceba Deus com existência, parece que isso não implica em que haja algum Deus existente; pois, meu pensamento não impõe necessidade alguma às coisas; e como só depende de mim imaginar um cavalo alado, embora não exista nenhum dotado de asas, assim eu talvez pudesse atribuir existência a Deus, ainda que Deus nenhum existisse.
Mas não é assim, pois aqui há um sofisma escondido sob a aparência dessa objeção; pois, do fato de eu não poder conceber uma montanha sem vale, não se segue que haja no mundo montanha alguma, nem vale algum, mas apenas que a montanha e o vale, quer existam, quer não existam, não podem, de maneira alguma, estar separados um do outro; ao passo que, do simples fato de eu não poder conceber Deus sem existência, segue-se que a existência lhe é inseparável, e que, portanto, ele existe verdadeiramente.
Não que meu pensamento possa fazer com que isso seja assim e que ele imponha alguma necessidade às coisas; mas, ao contrário, porque a própria coisa, a saber, a existência de Deus, determina meu pensamento a concebê-lo dessa maneira.
Pois, não está em minha liberdade conceber um Deus sem existência (isto é, um ser soberanamente perfeito sem uma soberana perfeição), como me é dada a liberdade de imaginar um cavalo com ou sem asas.
Referências Bibliográficas:
DURANT, Will. História da Filosofia – A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA S. J. Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.
JAEGER, Werner. Paidéia – A Formação do Homem Grego, Martins Fontes, São Paulo, 3ª edição, 1995.
Coleção Os Pensadores. Descartes. Discurso do Método – As Paixões da Alma – Meditações, Nova Cultural, São Paulo, 1999.
© Texto Produzido Por Rosana Madjarof – 1998 – Respeite os Direitos Autorais
1 Comment