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A Defesa de Sócrates – Parte III

A Defesa de Sócrates – Parte III

Repugnância e Abstenção Socrática da Política Comum

É possível que pareça estranho eu me encontrar sempre próximo e me dar tanto ao trabalho de fornecer conselhos a este ou àquele em particular, se, ao se tratar de aconselhar a cidade e de ir à tribuna para falar ao povo, então me falte coragem. E o motivo disso me haveis ouvido dizer várias vezes e em vários lugares, que existe em mim não sei que espírito divino e demoníaco, a respeito do qual, também Meleto, com jeito de estar se divertindo, aponta no ato da acusação.

É como uma voz que possuo dentro de mim desde criança, e que, toda vez que eu a ouço, sempre faz com que eu desista do que estou para fazer, e nunca me convence a realizar qualquer outra coisa. É essa voz que me impede de me ocupar das coisas do Estado, e parece-me que faz muito bem em agir dessa forma.

Sabeis perfeitamente, ó cidadãos, que se eu tivesse, por algum tempo, me ocupado dos negócios de Estado, teria sido morto também num curto espaço de tempo e não teria realizado nada de útil, nem por vós nem por mim. E não me desprezei se falo assim, pois é a verdade.

Não existe homem que possa se salvar ao opor-se com sinceridade, não digo a vós, mas a qualquer outra multidão, e tente impedir que muitas vezes se cometam injustiças as leis na cidade; e é também preciso que aquele que luta em defesa do que é justo, se de fato pretende escapar da morte, mesmo que por breve tempo, de viver de forma privada e não exercer funções públicas.

Daquilo que afirmo eu mesmo posso oferecer-vos provas cabais, e não palavras, mas do que mais necessitais: fatos. Escutai o que me sucedeu e vereis então que diante do que é justo não sou homem de ceder a ninguém por temor à morte; e que, além de não ceder, estou pronto a morrer. Falarei um pouco grosseiramente, como fazem alguns dos freqüentadores dos tribunais, mas com sinceridade.

Tendes conhecimento, ó cidadãos, de que nunca exerci em nossa cidade magistratura alguma, exceto uma vez em que fiz parte do Conselho, justamente no dia em que era o vosso desejo julgar em conjunto, ao arrepio da lei, e em seguida acolhestes todos ao meu parecer, aqueles dez capitães que não haviam recolhidos os náufragos e os mortos depois da batalha naval das Arginusas.

Então eu me opus, lutando para que nada fosse feito contra a lei, e votei contra. Os oradores habituais já estavam prontos para suspender-me da função e aprisionar-me, e vós a instigá-los e a gritar; julguei que era meu dever correr aquele risco mantendo-me ao lado do direito e do justo em vez de apoiar-vos e deliberar o injusto por temer a prisão e a morte.

E isto ocorreu quando a cidade ainda era regida por uma democracia. Mais tarde, depois que surgiu a oligarquia, os Trinta mandaram-me chamar, e a mais outros quatros, levaram-nos à sala do Tolo e ordenaram que retirássemos de Salamina o Leon de Salamina, para que este viesse a morrer.

E davam ordens semelhantes a vários outros homens, na tentativa de envolver em seus atos cruéis o maior número de pessoas possível. E naquela ocasião, não com palavras, e sim com fatos, demonstrei que a morte, se a palavra não soar por demais vulgar, não possui importância alguma para mim, mas de não cometer injustiças ou crueldades, isto sim me importa acima de qualquer coisa.

E aquele governo, apesar de prepotente, não me atemorizou, não me obrigou a cometer um ato injusto, e, quando saímos do Tolo e os outros quatro se dirigiram para Salamina a fim de retirar Leon, deixei-os ir e voltei para casa. Acredito que só por causa disso, eu já teria morrido, se aquele governo não tivesse sido deposto logo em seguida. E disto que relatei possuo muitas testemunhas.

 

O Testemunho dos Discípulos, de seus Pais e Irmãos

Credes que eu teria vivido por tantos anos se houvesse me ocupado de assuntos públicos e, fazendo-o como homem de bem, tivesse lutado em defesa da justiça e tivesse considerado esta defesa, como é necessário, meu dever mais alto? Com certeza, atenienses, não existe homem que o tivesse conseguido!

Em verdade, em toda minha existência, tanto em público, nas poucas vezes que me ocupei de coisas públicas, como privadamente, sempre fui o mesmo, um homem que diante do justo nunca cedeu a quem quer que fosse, a ninguém, e nem mesmo àqueles que os caluniadores chamam de meus discípulos.

Nunca fui mestre de quem, quer que seja, principalmente se é uma pessoa que , quando falo ou atendo àquilo que acredito ser meu ofício, deseja escutar-me; seja jovem, seja velho, nunca me refutaram, e não é verdade que, se recebo dinheiro, eu falo e se não recebo, fico calado, porque estou da mesma maneira à disposição de todos, pobres e ricos, quem quer que me indague e deseje ouvir as minhas respostas.

Por conseguinte, se entre os homens que me freqüentam, um se torne de boa formação moral ou não, não será justo que eu receba elogios ou impropérios, já que não prometi ensinamento algum a ninguém, nem nunca ensinei coisa alguma. E se há quem diga que aprendeu ou ouviu alguma coisa de mm, em particular, alguma coisa que todos os outros não tenham aprendido ou ouvido, tenhais a certeza de que este não diz a verdade.

Diante disso, como é possível que a alguns agrade estar comigo tanto tempo? Vós ouvistes, ó cidadãos, que eu disse toda a verdade: têm prazer de ouvir-me quando submeto à prova aqueles que pensam serem sábios e não o são. Com efeito, não é desagradável. Ao fazer isso, repito-vos, cumpro as ordens do deus, dadas por intermédios de vaticínios e sonhos, e por outros meios de que se serve a providência divina para ordenar ao homem que faça alguma coisa. E estas coisas, ó atenienses, são verdadeiras e demonstráveis.

Se de fato eu corrompo os jovens, se já corrompi algum, seria ainda necessário que estes, ao envelhecerem, tomassem consciência de que quando eram jovens eu os aconselhei a praticar o mal, e que viessem à tribuna para acusar-me e para exigir minha punição, e, se não quisessem fazê-lo diretamente, que enviassem hoje para cá as pessoas de sua família, pais, irmãos, e outros, se os que lhe são caro sofreram algum mal por mim causado, e que me fizessem pagar por isso. Muitos destes estão presentes, eu os vejo.

Ali está Críton, meu contemporâneo e conterrâneo com sei filho Critóbulo, e também Lisânias de Esfeto, com seu filho Ésquino,e ainda Antífon de Cefísia, pai de Epígeno, e ali estão outros, cujos irmãos viveram comigo familiarmente, Nicóstrato, , filho de Teozótides, irmão de Teódoto, e como Teódoto faleceu, não poderá falar com o irmão a meu favor, e aí está Parálio, filho de Demódoco,de quem era irmão Teages, e ali Adimanto, filho de Aríston, de quem ali se encontra o irmão Platão, e Aantodoro, de quem temos aqui o irmão Apolodoro. E poderia nomear muitos outros.

E conseguiria indicar vários outros que Meleto poderia apresentar como testemunhas na sua acusação; se ele se esqueceu disso, que os apresente agora, cedo-lhe o lugar; se existe alguma testemunha deste tipo, que se manifeste.

Porém, atenienses, vereis que todos farão o contrário, todos falarão a favor do corruptor, em defesa daquele que causa o mal de seus familiares, como afirmam Meleto e Ânito. Talvez esses, os corrompidos, tenham alguma razão para me defender, mas aqueles que não foram corrompidos, que são agora anciãos, que outra razão podem ter para me defender exceto esta, que é verdadeira e justa: a certeza de que Meleto mente e eu digo a verdade?

 

Epílogo 

Sócrates não quer Misericórdia

Cidadãos, são estas, enfim, as razões que posso apresentar em minha defesa, e algumas mais, que, porém, são bem poucos diferentes destas. É possível que alguém entre vós, ao pensar em si mesmo, possa irritar-se comigo se, algum dia, ao ter de enfrentar um processo menos arriscado do que este, suplicou clemência aos juizes, e, além disso, trouxe ao tribunal os filhos e vários de seus parentes e amigos, ao passo que eu não me porto desta maneira, embora, ao que parece, esteja arriscando a vida .

É possível que alguém, ao fazer intimamente esta comparação, se deixe influenciar pelo amor-próprio ferido e, desta forma, enraivecido com minha atitude, emita seu voto com raiva. A uma pessoa assim, que talvez esteja entre vós, não afirmo categoricamente que há, poderei responder da seguinte maneira: “Meu estimado amigo, eu também trouxe alguém da minha família, e aqui caberia aquele dito de Homero: ‘Que não de carvalho, nem de pedra nasci, mas de criaturas humanas’.

Eu também possuo família, ó atenienses; tenho três filhos, um já crescido e dois ainda crianças, mas não os trouxe aqui para despertar vossa misericórdia e absolver-me”.

E não é por orgulho que me comporto assim, nem por desprezo, nem para provar que sou corajoso diante da mote, mas pela minha reputação, pela vossa e de toda a cidade, não me pareceu honroso agir dessa maneira, ainda mais na minha idade e com o meu nome, verdadeiro ou falso que seja, porque corre pela cidade que, em quaisquer aspectos, Sócrates se distingue da maioria dos homens.

Ora, se aquele que entre vós possuem fama de se distinguirem pela sabedoria e coragem, ou por outra virtude qualquer, se procedessem dessa maneira, seria vergonhoso, e pessoas desse tipo, eu mesmo presenciei muitas vezes, quando eram réus em um processo, embora possuíssem alguma boa reputação, têm atitudes excepcionais, como se achassem que iriam sofrer sabe-se lá que tortura se devessem morrer e como se tornassem imortais se não fossem condenados à morte por vós.

Estes, sim, envergonham a toda a cidade, tanto que qualquer forasteiro poderia imaginar que aqueles atenienses que se distinguem por sua virtude e que seus concidadãos elegem à magistratura e outras honras não são em nada melhores que as mulheres. Por isso, não nos portamos dessa maneira é o que compete a nós, que temos fama de sermos ainda alguma coisa. Nem vos conviria, se nos comportássemos assim, deixar-nos fazê-lo, mas sim mostrar a todos que julgais com maior rigor quem encena esses dramas lastimosos e cobre a cidade de ridículo do que quem suporta com serenidade o próprio destino.

Não considero justo, ó cidadãos, tentar influir nos juízes e, mediante súplicas, livrar-me da condenação, mas sim informá-los e convencê-los.

Os juízes não se encontram aqui para favorecer o justo, mas para julgar o justo, nem juraram que favorecerão a quem lhes paga, mas que farão justiça de acordo com as leis. Portanto, não é necessário que vos habitueis a isso; não faremos coisas boas e piedosas, nem vos nem eu.

Não iríeis querer então, ó atenienses, que eu cometesse diante de vós atos que reputo desonestos, injustos e vis, e eu menos ainda, eu que sou acusado por Meleto, aqui presente, de impiedade. Porque é evidente que se eu, por meio de súplicas procurasse convencer-vos e obrigar-vos a violar o juramento, eu vos ensinaria que, desta acusação, seria culpado de não crer nos deuses. E é justamente o contrário que sucede. Acredito nos deuses mais do que qualquer um dos meus acusadores, e deixo a vosso critério, e ao do deus, julgar o que será para vós e para mim o melhor.

 

Segunda Parte

A Pena

Do Esperado da Pena

Se eu não estou abalado, ó atenienses, com o que acaba de ocorrer, o de terem votado pela minha condenação, isso deve-se, entre outras razões, ao fato de não haver sido apanhado de surpresa. O que, no entanto, me causa mais estranheza é o grande número de votos favoráveis a mm , pois acreditava que seria condenado por muito mais votos, e não por tão poucos. Ao que me parece, com apenas mais trinta votos a meu favor teria sido absolvido.

Portanto, penso haver escapado das mãos de Meleto, e não só haver escapado delas, mas, o que é bastante evidente, se Ânito e Lícon não tivessem vindo para me acusar, eu teria sido multado em mil dracmas por não haver conseguido um quinto dos votos.

Este homem, então, pensa que mereço a pena capital.

E eu, que pena apresentarei em oposição à vossa, ó atenienses? Não é evidente que seja a mesma que me foi imposta? Qual será então?

Que pena merecerei ou que multa, por não haver usufruído em paz, ao longo da minha existência, o que aprendi, e por ter desprezado aquilo que atrai a maioria.

Riquezas, interesses particulares, cargos militares e políticos e todas as outras magistraturas, e as agitações e conspirações que acontecem nas cidades, pois sempre me considerei por demais honesto para conseguir salvar-me se me dedicasse a tais coisas e convencido de que não teria sido útil nem para mm nem para vós, e porque sempre acudi rapidamente aonde quer que eu reputasse poder proporcionar o maior bem a cada um de vós em particular, tentando convencer-vos de que, antes de qualquer coisa e de vós mesmos, procurásseis ser os melhores e mais sensatos possível, e que vos esforçásseis ao máximo para trabalhar em prol da cidade.

Que mereço por sempre haver agido desta forma? Algum grande bem, ó atenienses, se é que devo ser recompensado como mereço. Que será apropriado para um pobre benfeitor que precisa de tempo para aconselhar-vos nos vossos assuntos?

O que mais seria conveniente a esse homem, atenienses não seria mantê-lo no Pritaneu com muito maior razão do que aqueles que, com cavalo, biga ou quadriga, tenham conseguido triunfos nos Jogos Olímpicos. Porque estes vos proporcionam felicidade, e também a mim, e não precisam ser sustentados como eu precioso. Se, então, devo pedir, de acordo com o direito, aquilo a que faço jus, peço se alimentado no Pritaneu.

Contudo, mesmo nestas minhas palavras de agora, talvez julgais notar quase o mesmo sentimento de ofensivo orgulho que acreditáveis ter percebido quando falava a respeito de suplicar e despertar comiseração. Não, não é isso, ó cidadãos, mas algo bastante diferente.

Penso nunca haver prejudicado ninguém por querer, e mesmo assim não logrei convencer-vos; tivemos muito pouco tempo para nos entendermos. E acredito que se houvesse leis entre nós, como as que há entre outros povos, que proíbem que uma pena de morte seja aplicada em apenas um dia, e sim em mais, estaríeis convencidos, e, mesmo assim, não é fácil livrar-se em tão breve espaço de tempo de acusações tão graves.

E também pensa em prejudicar a mm mesmo ao declarar que sou merecedor da pena e pedir que esta pena seja aplicada a mim. E por temer o que eu deveria agir dessa forma? Talvez por temer sofrer aquilo que Meleto exige para mim e que eu declaro não saber se é bom ou mau? E em troca desta pena devo escolher outra entre aquelas que eu sei serem más? Deverei solicitar a prisão?

E por que motivo deverei viver preso, a serviço da eterna magistratura dos Onze? Uma pena em dinheiro e permanecer enjaulado enquanto não for paga? Mas é exatamente a mesma coisa que a anterior, porque não possuo dinheiro para pagá-la. Pedirei o exílio? Sim, talvez seja precisamente esta pena que desejastes para mim.

Porém, em verdade, ó atenienses, eu teria de estar imbuído de uma bem ingênua vontade de viver se fosse assim tão irracional a ponto de não poder nem mesmo fazer este raciocínio, que enquanto vós, embora sendo meus concidadãos, não fostes capazes de agüentar minha companhia e os meus discursos, e mais, que minha companhia foi tão desagradável que procuras agora livrar-vos dela, que outros a agüentariam de bom grado?

E ainda, atenienses, que excelente vida seria a minha, nesta idade, exilado, mudando sempre de país para país, perseguido em todos os lugares. Porque sei muito bem que aonde quer que eu vá, os jovens acorrerão a fim de me ouvir, como aqui, e, se eu os repelir, serão estes mesmos que me farão perseguir, convencendo os mais velhos; e se não os repelir, serei perseguido por seus pais e demais parentes.

Algum de vós talvez pudesse contestar-me: “Em silêncio e quieto, ó Sócrates, não poderias viver após ter saído de Atenas?” Isso seria simplesmente impossível. Porque, se vos dissesse que significaria desobedecer ao deus e que, por conseguinte, não seria possível que eu vivesse em silêncio, não acreditaríeis e pensaríeis que estivesse sendo sarcástico.

Se vos dissesse que esse é o maior bem para o homem, meditar todos os dias sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo e analisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de tais análises não é digna de ser vivida, se vos dissesse isto, acreditar-me-iam menos ainda. Contudo, é isto que vos digo, ó atenienses, porém é difícil convencer-vos.

Por outro lado, não estou habituado a considerar-me merecedor de mal algum. Se eu possuísse dinheiro, poderia ter-me aplicado uma multa que conseguisse pagar, porque, assim, não teria me infligido mal algum. Mas não possuo dinheiro e não posso fazer isso, exceto se desejeis multar-me de uma quantia que eu tenha a possibilidade de pagar. Poderei pagar-vos apenas uma mina de prata. Portanto, multo-me em uma mina de prata.

Mas vedes, ó atenienses, que Platão, Críton, Critóbulo e Apolodoro querem que eu me multe em trinta minas, que eles mesmos garantirão. Multo-me então em trinta minas. E esses homens, dignos de crédito e confiança, serão garantes dessa quantia.

 

Terceira Parte

Após a Condenação

Aos que Votaram Contra

Por não haverdes aguardado mais um pouco, atenienses, aqueles que desejarem injuriar a cidade vos impingirão a fama e a acusação de terdes matado Sócrates, um sábio. Sim, chamar-me-ão de sábio, apesar de que eu não o seja, os que vos quiserem censurar. Se esperásseis mais algum tempo, a própria natureza satisfaria o vosso desejo. Bem sabeis a minha idade, já distante da vida e próxima da morte. Não dirijo essas palavras a todos vós, mas aos que votaram pela minha morte.

Para esses mesmos, adito o seguinte: talvez imagineis, senhores, que me perdi por falta de discursos com que vos poderia persuadir, se na minha opinião se devesse tudo fazer e dizer para escapar à justiça. Engano! Perdi-me por falta, não de discursos, mas de atrevimento e descaramento, por me recusar a proferir o que mais gostais de ouvir, lamentos e gemidos, fazendo e dizendo uma porção de coisas que declaro indignas de mm, tais como costumais ouvir dos outros.

Ora, se antes achei que o perigo não justificava indignidade alguma, tampouco me pesa agora da maneira por que me defendi; ao contrário, muito mais folgo em morrer após a defesa que fiz, do que folgaria em viver após fazê-la daquele outro modo. Quer no tribunal, quer na guerra, não devo eu, não deve ninguém lançar mão de todo e qualquer recurso para escapar à morte.

Com efeito, é evidente que, nas batalhas, muitas vezes se pode escapar à morte arrojando as armas e suplicando piedade aos perseguidores; em cada perigo, tem muitos outros meios de escapar à morte quem ousa tudo fazer e dizer. Não se tenha por difícil escapar à morte, porque muito mais difícil é escapar à maldade; ela corre mais ligeira que a morte.

Neste momento, fomos apanhados, eu, que sou um velho vagaroso, pela mais lenta das duas, eu e os meus acusadores, ágeis e velozes, pela mais ligeira, a malvadez. Agora, vamos partir; eu, condenado por vós à morte; eles, condenados pela verdade a seu pecado e a seu crime. Eu aceito a pena imposta; eles igualmente. Por certo, tinha de ser assim e penso que não houve excessos.

Acerca do futuro, no entanto, quero fazer-vos um vaticínio, meus condenadores; de fato, eis-me chegado àquele momento em que os homens vaticinam melhor, quando estão para morrer. Eu vos afianço, homens que me mandais matar, que o castigo os vos alcançará logo após a minha morte e será, por Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes.

Vós o fizestes supondo que vos livraríeis de dar boas contas de vossa vida; mas o resultado será inteiramente oposto, eu vo-lo asseguro. Serão mais numerosos os que vos pedirão contas; até agora eu os continha e vós não os percebíeis; eles serão tanto mais importunos quanto são mais jovens, e vossa irritação será maior.

Se imaginais que, matando homens, evitareis que alguém vos repreenda a má vida, estais enganados; essa não é uma forma de libertação, enm é inteiramente eficaz nem honrosa; esta outra, sim, é a mais honrosa e mais fácil; em vez de tapar a boca dos outros, preparar-se para ser o melhor possível. Com este vaticínio, despeço-me de vós que me condenastes.

 

Aos que o Absolveram

Com os que votaram pela absolvição, gostaria de conversar com respeito ao que se acaba de suceder, enquanto os magistrados estão ocupados e antes de ir para onde devo morrer. Por conseguinte, senhores, ficai comigo mais um pouco; nada obsta que nos entretenhamos enquanto dispomos de tempo. Quero explicar-vos, como a amigos, o sentido exato de que me aconteceu agora.

O que me ocorreu senhores juízes, a vós é que chamo com tino de juízes, foi algo prodigioso. A usual inspiração, a da divindade, sempre foi rigorosamente assídua em opor-se a ações mínimas, quando eu ia cometer um erro; agora, porém, acaba de me ocorrer o que vós estais vendo, o que se poderia considerar, e há quem o faça, como o maior dos males; mas a advertência divina não se me opôs de manhã, ao sair de casa, nem enquanto subia aqui para o tribunal, nem quando ia dizer alguma coisa; no entanto, quantas vezes ela me conteve em meio de outros discursos!

Mas hoje não se me opôs vez alguma no decorrer do julgamento, em nenhuma ação ou palavra. A que devo atribuir isso? Vou dizer-vos: é bem possível que seja um bem para mim o que aconteceu e não é forçoso acreditar que a morte seja um mal. Disso tenho agora uma boa prova, porque a usual advertência não poderia deixar de opor-se, se não fosse uma ação boa o que eu estava para praticar.

Façamos mais esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer é uma destas duas coisas: ou o morte é igual a nada, e não sente nenhuma sensação d coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!

Bem posso imaginar que, se devêssemos identificar uma noite em que estivéssemos dormindo tão profundamente que nem mesmo sonhássemos e, contrapondo a essa as demais noites e dias de nossa vida, pensar e dizer quantos dias e noites de nossa existência vivemos melhor e mais agradavelmente do que naquela noite, bem posso imaginar que, já não digo um homem comum, mas o próprio rei da Pérsia acharia fácil enumerar tal noite entre as outras noites e dias.

Logo, se a morte é isso, digo que é uma vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta como nada mais que uma noite. Se, do outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes?

Se, ao chegar ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem a justiça, Minos¹,  Radamanto, Éaco, Triptólemo e outros semideuses que foram justiceiros em vida, não valeria a pena a viagem? Quanto não daria qualquer de vós para estar na companhia de Orfeu²,  Museu, Hesíodo e Homero?

Por mm, estou pronto a morrer muitas vezes, se isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento maravilhoso, quando encontrasse Palamedes, Ajax de Telamon e outros dos antigos, que tenham morrido por um sentença iníqua; não me seria desagradável comparar com os deles os meus sofrimentos e, o que é mais, passar o tempo examinando e interrogando os de lá como aos de cá, a ver quem deles é sábio e quem, não o sendo, cuida que é.

Quanto não se daria, senhores juízes, para sujeitar a exame aquele que comandou a imensa expedição contra Tróia, ou Ulisses, ou Sísifo? Milhares de outros se poderiam nomear, homens e mulheres, com quem seria uma felicidade indizível estar junto, conversando com eles, sujeitando-os a exame! Os de lá absolutamente não matam por uma razão dessas! Os de lá são mais felizes que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo resto do tempo, se a tradição está certa.

Vós também, senhores juízes, deveis bem esperar da morte e considerar particularmente esta verdade: não há, para o homem bom, mal algum, quer na vida, quer na morte, e os deuses não descuidam de seu destino. O meu não é conseqüência do acaso; vejo claramente que era melhor para mim morrer agora e ficar livre de fadigas. Por isso é que a advertência nada me impediu.

Não me insurjo absolutamente contra os que votaram contra mm ou me acusaram. Verdade é que não me acusaram e condenaram com esse modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano: nisso merecem censura.

No entanto, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos crescerem, castigai-os, atormentai-os com os mesmíssimos tormentos que eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou de outra coisa que da virtude; se estiverem supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem do que devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós assim agirdes, eu terei recebido de vós justiça; eu, e meus filhos também.

Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor destino, se eu, se vós, é segredo para todos, exceto para a divindade.

¹ Rei lendário de Creta, filho de Europa e de Zeus, marido de Pasífae, sábio legislador, juiz dos Infernos com Éaco e Triptólemo.

² Célebre aedo da era pré-homérica, cantava e tocava a lira com tal perfeição que até as feras se aquietavam e vinham deitar-se a seus pés. Atribuía-se-lhe a invenção da lira e dos rituais mágicos e divinatórios, origem de seitas místicas, a que se deu o nome de orfismo.

 


Referências Bibliográficas:

DURANT, Will. História da Filosofia – A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.

FRANCA S. J. Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.

PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.

VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.

JAEGER, Werner. Paidéia – A Formação do Homem Grego, Martins Fontes, São Paulo, 3ª edição, 1995.

Coleção Os Pensadores. Sócrates, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol.I, agosto 1973.

Coleção Os Pensadores, Apologia de Sócrates / Platão, Nova Cultural, São Paulo, março 1999.

Coleção Os Pensadores, Defesa de Sócrates / Platão, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol.II, agosto 1972.

© Texto Produzido Por Rosana Madjarof – 1997 – Respeite os Direitos Autorais

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